A clássica tripartição de poderes na forma como foi deixada pelo pensador francês Montesquieu é citação obrigatória nas escolas, tema inesgotável de estudiosos da teoria do Estado, e com frequência lembrada em discursos de políticos, mas na prática ela é tratada em nosso País com muito pouco zelo, não passando, quase sempre, de uma expressão retórica para embelezamento de teses acadêmicas.
Entretanto, ela está consagrada na letra constitucional, o que deveria sacramentá-la, considerando-se que é a Constituição a lei de todas as leis.
Nada pode ir além dela, nada contra ela.
E se a chamada Carta Magna consagra que a República é formada por três poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário – harmônicos entre si e independentes, nenhuma dúvida mais deveria restar.
Pelo menos é assim que se procura instalar na consciência jurídica nacional, de onde saíram – e continuam saindo – muitos dos nossos dirigentes, a ponto de se ter considerado no passado o nosso País como a República dos Bacharéis.
No mundo real, contudo, a letra da lei tem mais de uma leitura, muito além da forma como é tratada nos manuais jurídicos.
Com frequência ela é contraditória, negando o que parecia intocável, como a rigidez da independência de cada Poder da República.
Assim, essa independência desfaz-se com a interferência entre os poderes nas mais diversas formas, todas condenáveis, reprovadas pelo poder atingido, justificadas com filigranas pelo que usurpa a competência constitucional, e assim as coisas vão se misturando e confundindo a perspectiva de quem está na planície, a sociedade.
Essa intromissão de poderes está muito visível e em alguns casos é aplicada com base na própria Constituição, como é o caso da medida provisória, instrumento excepcional, através do qual o Poder Executivo legisla.
As explicações são extensas, tendo sempre por fundamento o interesse público na realização de atividades que necessitam de rapidez na autorização legal, o que é impossível através do processo legislativo convencional, aquele previsto pela tripartição de poderes.
De outro lado, o Legislativo reclama tanto contra as medidas provisórias quanto contra determinadas decisões do Judiciário, que considera, igualmente, usurpação de competência.
E apesar de ser o órgão criador das leis, nada faz para mudar o que atropela o princípio da autonomia.
Mas é nas menores atitudes que a intromissão acontece e vira crônica diária, sem que ninguém a questione como uma agressão à separação de poderes. É o que acontece, por exemplo, na escolha de presidentes do Senado e da Câmara Federal.
Ninguém é escolhido para esse posto sem negociação direta com o presidente da República e o seu aval. É certo, trata-se de cargo político, com grande repercussão no funcionamento do Legislativo e sua relação com o Executivo, mas ao delegar ao dirigente de outro poder a autoridade para escolher seu próprio dirigente, o Legislativo se curva, perde aquela dimensão constitucional.
O mesmo acontece com os governos estaduais e as assembleias legislativas, as prefeituras municipais e as câmaras de vereadores.
Ora, o que entendemos é que essa delegação de competência altera o equilíbrio de poderes e desfaz os fundamentos do princípio constitucional, contribuindo para a fragilização das bases de nossa democracia, pois por trás dos biombos onde ocorrem as negociações para escolha de nome tal ou nome qual há, inevitavelmente, a suspeita de barganha, troca de favores e benefícios.
Essa não pode ser a fórmula desejável para a evolução e o aperfeiçoamento de nossas instituições.
A independência e autonomia dos poderes é que instalam a solidez dos nossos alicerces e permitem, inclusive, a depuração de vícios que contaminam o processo político.
O grave nisso tudo é que já faz parte da cultura nacional, absorvida pela prática do mais baixo ao mais alto escalão da República, restando-nos a esperança de que a conscientização da sociedade e o envolvimento dos segmentos formadores de opinião inspirem a classe política a fazer valer os fundamentos constitucionais.