Por Carlos Cardoso Filho Quando o professor Raimundo Teixeira Mendes, juntamente com Miguel Lemos e Manuel Pereira Reis, pensaram a bandeira nacional, associaram o verde e o amarelo à Casa Real de Bragança, e o azul à imagem da esfera celeste, inclinada segundo a latitude da cidade do Rio de Janeiro às 12 horas siderais (8 horas e 30 minutos) do dia 15 de novembro de 1889 (horário da ocorrência da Proclamação da República).

Certamente, os autores de nossa bandeira nacional repetiram a cor verde na inscrição “Ordem e Progresso”, por simples composição de tom com o verde que preenche a parte retangular da flâmula.

Se tivessem eles utilizado a cor negra para as letras da expressão que consta da bandeira, teriam prestado Justa lembrança e merecida homenagem à raça que ajudou, decisivamente, a escrever com suor, lágrimas, sangue e vidas a história deste País.

Vindos de diversas regiões de um continente já tão diversificado etnicamente e linguisticamente como o continente africano, os negros chegavam ao Brasil principalmente de localidades do Sudão, de Gâmbia, de Serra Leoa, da Costa da Malagueta, da Costa do Marfim, da Nigéria, do Congo, de Angola e de Moçambique.

Somadas a essa diferenciação de troncos étnicos e lingüísticos, a hostilidade do explorador e as condições subumanas que encontraram no Brasil forjaram no negro brasileiro traços que misturam resistência física e emocional com sensibilidade e jogo de cintura não vistos em lugar algum do mundo.

Somos espaciais, por isso.

Como cada grupo era obrigado – por força do interesse produtivo da época – a ficar isolado do outro, o negro foi o componente dessa nossa bela miscigenação racial que, para não sofrer nas mãos do feitor mais do que a já maldita cota de perversos açoites que lhe era reservada, precisou aprender uma língua portuguesa mal falada, ou melhor, mal gritada pelos donos dos chicotes.

No dizer de Darcy Ribeiro, “acabaram conseguindo aportuguesar o Brasil.” Nesse contexto, que misturava dor e medo, agonia e solidão, os negros foram reinventando uma nova língua portuguesa, um português que se aparta de todos os outros falados no mundo.

Uma língua mais dengosa e adocicada, que marca essa diferença, mais nitidamente, em situações que exigem mais sensibilidade e mais expressividade emocional, seja textual, seja oral.

Não bastasse a incalculável importância da presença negra no Brasil, pois foi o trabalho negro o responsável, por exemplo, pelo Brasil do açúcar e pelo Brasil do ouro, herdamos, também, o melhor de sua inteligência, de sua resistência, de seu ritmo, de sua cadência, de sua graça, de sua beleza e de seu sabor.

Do trabalho e do sofrimento dos negros, brotavam: todo o doce do açúcar, todo o brilho do ouro e toda a história do Brasil feito em solo brasileiro.

Triste início para o povo brasileiro, pois, já na Idade Moderna, em suas novas terras, fez uso de trabalho escravo.

Paradoxo histórico, econômico e social que coloca pelo avesso o sentimento de superioridade e o preconceito do explorador foi justamente o fato de ter sido o trabalho negro que fez o Brasil participar da civilização mundial daquele tempo.

Fez o País ver-se incluído na globalização daquela época, ainda que como fornecedor dos insumos, garantidor dos “pratos” provincianos que compunham o grande “banquete” da metrópole.

Conseguir ter se mantido humano diante de tamanho sofrimento e longe de seus costumes e de suas raízes foi prova da força e da esperança que são marcas que todos nós adquirimos no sangue ou no convívio com os negros.

Das três raças que formam nossa identidade racial, cultural e social, a raça negra é a que nos trouxe, com mais intensidade, o sonho de liberdade.

Arthur Ramos já dizia que o negro, por sua própria condição de vida, era o único presente em solo brasileiro que pensava, dia e noite, em liberdade.

Somos todos um pouco brancos, um pouco índios e um pouco negros.

Mas Darcy Ribeiro bem nos lembra de que o ingrediente novo nessa construção da nação Brasil é o negro, pois enquanto o índio (verdadeiro dono das terras), que também sofreu e foi subjugado e dizimado, já existia desde sempre em solo brasileiro, e o branco vinha de Portugal (velho mundo) de lá trazendo costumes, avanços e mazelas, os negros vieram de vários lugares e chegaram com suas diversas etnias e línguas e, para sobreviver, precisaram reinventar a vida e se refazer em meio ao desfazimento provocado pela exploração.

O modelo escravocrata fez perecer a vida de mais de doze milhões de negros que desembarcaram em terras brasileiras.

Hoje, muitos dos que visitam Porto de Galinhas, em Ipojuca-PE, por exemplo, não sabem que o nome daquela bela praia se refere às chegadas dos navios negreiros onde, em tempos de proibição do tráfico, dizia-se: “tem galinha nova no porto”, para despistar a presença ilegal de escravos.

O Brasil ainda precisa resgatar grande parte do passivo social com a raça negra, passivo esse que foi sendo contabilizado em contas a regularizar ao longo de diversos ciclos econômicos seguidos.

No patrimônio histórico, cultural, social e econômico deste País, há muitos valores a serem creditados em favor do negro brasileiro.

Quando menino, talvez na quarta série do primário (hoje ensino fundamental), perguntei à professora o porquê de serem os feitos dos brancos tidos como história e os dos índios e dos negros representarem folclore.

Só mais tarde é que pude entender o que, àquela época, perguntara.

Se a cada dia 20 de novembro nos lembramos da morte de Zumbi dos Palmares e comemoramos o Dia da Consciência Negra, precisamos, do dia-a-dia, lutar pela efetivação das políticas públicas que nosso ordenamento jurídico – a partir da Constituição Federal – garante para que se vejam abolidas todas as formas de preconceitos e para que sejam reparados todos os erros cometidos no passado.

PS: Carlos Cardoso Filho é Auditor Tributário do Ipojuca e Integrante da Associação Pernambucana dos Fiscos Municipais – APEFISCO