No Terra O Ministério Público Federal (MPF) iniciou uma nova etapa de um longo trabalho de busca de corpos de desaparecidos durante o período da ditadura militar brasileira (1964 - 1985).
Entre os cerca de dez procurados, está Virgílio Gomes da Silva, um dos líderes do sequestro do embaixador americano Charles Burke Elbrick, em 1969, um dos episódios mais marcantes da luta armada contra os militares. “É como procurar agulha num palheiro”, confessa a procuradora da República Eugênia Gonzaga, responsável pelas buscas, em entrevista a Terra Magazine.
A família apresentou documentos que provavam que Virgílio foi enterrado numa das quadras do cemitério Vila Formosa, na zona leste de São Paulo.
Funcionários relataram a prática ilegal de transferir ossadas de um local para outro sem registro.
No lugar em que um sepultador relatou haver um ossário, a perícia encontrou o que parece ser um depósito com três metros de largura e profundidade indefinida. - A quadra onde estaria o Virgílio, nós verificamos que foi redesenhada, foram suprimidas ruas.
Teve partes em que foi feito aterro, há sepultura em cima de sepultura, uma situação terrível - conta Eugênia.
Ainda assim, o MPF espera abrir algumas dessas sepulturas até o fim de novembro.
A procuradora Eugênia Gonzaga trabalha desde 1999 na localização de desaparecidos da ditadura.
Em 2005, foi identificado o corpo de Flavio Molina, militante da Ação Libertadora Nacional (ALN) torturado e morto nos anos 70 e em 2008, o do espanhol Miguel Sabanoê.
Leia a entrevista na íntegra.
O Ministério Público noticiou o início das buscas no cemitério Vila Formosa.
Foi um processo bastante longo, não é mesmo?
A senhora poderia contar um pouco? É longo, é verdade.
Nós trabalhamos ajudando familiares nessa localização de corpos já há alguns anos.
Mas até onde nós sempre soubemos, o caso de Vila Formosa não permitia mais a localização de praticamente ninguém.
Foi apurado em 1990 por uma CPI da Câmara que havia lá no cemitério de Vila Formosa uma quadra chamada quadra 11 que ficou conhecida como a quadra dos terroristas.
Essa quadra foi totalmente descaracterizada e é inviável a localização de qualquer sepultura da época de 70 que esteja localizada nesta quadra 11.
Essa era a informação que tínhamos.
Neste ano, chegou a informação da família do Virgílio Gomes da Silva mostrando que ele estava em outra quadra, não na quadra 11.
E de fato ele foi enterrado na quadra 50.
Com base nesse mesmo caminho, nós levantamos o nome de outros desaparecidos políticos.
Durante essas diligências, sepultador falou assim: “de um ossário do antigo cruzeiro?”.
No local do tal ossário, se confirmou que abaixo do solo tem um compartimento de 3x3 metros e de profundidade indeterminada.
A quadra onde estaria o Virgílio, nós verificamos que foi redesenhada, foram suprimidas ruas.
Teve partes em que foi feito aterro, há sepultura em cima de sepultura, uma situação terrível.
Lá vai ser muito difícil achar de fato uma única ossada, mas nós temos pistas de onde as ossadas dessas pessoas foram parar.
Pode ser o caso de fazer um memorial, algo reconhecendo a ocultação e que sirva de motivo para uma revisão nessa maneira absurda de se tratar ossadas de indigentes.
Porque qualquer um está sujeito a ser enterrado como indigente.
Você pode perder seus documentos e nunca mais ninguém vai achar…
Ainda hoje isso?
Hoje já melhorou muito, mas até uns dez anos atrás, ou seja muito pouco tempo, não haveria a menor chance de localização de uma pessoa enterrada nessas condições sem a família acompanhar o enterro.
Mas então não há expectativa de exumação?
Vai haver exumação.
A partir do momento em que os peritos apontarem pelo menos cinco, seis ou dez sepulturas como sendo aquelas prováveis, nós vamos fazer a exumação.
A gente quer esgotar todas as possibilidades, mas a gente já está ciente das dificuldades do local.
Os relatos dos coveiros e das pessoas que trabalham no local é que há uma prática comum até uns dez anos atrás de retirar esses ossos e colocar em outro local sem mudar os registros.
Complicadíssimo… É como procurar agulha num palheiro.
Apesar de a gente ter feito todo um desenho de como seriam aquelas quadras, a gente ainda não pode prometer nada.
A gente vai exumar, mas as chances são muito pequenas.
Para a família, como está sendo isso?
Foi a família do Virgílio que a procurou, não?
Eu expus toda a dificuldade para a família e a fala que eu ouvi da esposa dele me confortou.
Ela me disse: “se eu tiver um lugar para pôr flor, eu já estou feliz”.
Então acho que se no máximo a gente conseguir um memorial ou algo do tipo, para a família é melhor do que o que havia antes.
Porque nunca isso foi procurado com a cautela que precisava.
Quarenta anos procurando isso.
Quarenta anos eles esperando alguma providência, então a gente quer executar ao máximo, o que eu realmente acho muito difícil.
Mas é que para eles isso já é um avanço.
O Ministério Público já sabe exatamente quem são todas essas pessoas que estão sendo buscadas?
Eu tenho, a gente não está divulgando para não ficar criando expectativa entre os familiares.
Esses outros familiares não vieram até nós, nós fomos por nossa conta.
Então, agora os familiares que tiverem interesse vão vir até nós.
Mas mesmo sem falar nomes, a gente pode conhecer a história deles?
Porque do Virgílio o que se diz é que era um homem simples, um operário…
O Virgílio se envolveu na luta armada.
Ele tinha um codinome “Jonas” e foi um dos coordenadores daquele sequestro que foi bem-sucedido do embaixador americano Charles Burke Elbrick (em 1969).
Era operário, de origem simples, era nordestino.
Uma pessoa que queria um país mais justo.
De acordo com a família dele, ele era muito envolvido com essa questão social.
Então, ele virava para os irmãos e falava “não se preocupe, vai ter casa para todo mundo”, “a gente não vai mais precisar viver da mesma maneira”.
Ele era um lutador, um guerreiro.
Pergunto isso porque existe um pedaço da história da ditadura que não se conhece, não é?
De pessoas como ele, que não ficaram famosas…
Os que morreram são, na minha opinião, os que de fato lutaram muito.
E deram a vida.
Eles morreram indevidamente.
Foram corajosos demais, eles não tinham chance contra a ditadura, contra o exército.
Era uma luta totalmente desigual e eles morreram, deram a vida.
Quem ficou foram pessoas que conseguiram escapar.
Mas a ditadura sabia quem ela matava.
Ela matava realmente as cabeças, pessoas que estavam de algum modo coordenando e tinham envolvimento com a resistência.
Então a gente pode imaginar que essas outras pessoas que estão sendo procuradas têm uma história parecida, gente desconhecida mas que teve envolvimento na luta contra a ditadura?
Sim, desconhecidas.
Até porque se matassem um “Chico Buarque da vida” a população iria se rebelar.
Então, infelizmente, essas pessoas que morriam ninguém não tinha nem noção do que estava acontecendo porque eram figuras desconhecidas e que estavam tentando lutar por aquilo que eles achavam que era melhor.
E como a família teve acesso a esses documentos sobre a localização do corpo?
Essas famílias todas nunca descansaram, elas sempre foram atrás.
A família do Virgílio chegou a ir ao cemitério, mas não sabia a quem recorrer.
Para eles esse documento não é novo, mas eles nunca tinham achado que podiam contar com a ajuda de alguma autoridade.
Eles nunca se cansaram.
Eu acho que hoje a gente só tem o que tem graças a essas pessoas que arriscaram a vida atrás de documentos, guardando cópias.
Por exemplo, ficavam sabendo que iam queimar os arquivos do IML (Instituto Médico Legal) lá do Dops (Departamento de Ordem Política e Social da ditadura militar), eles invadiam o local, pegavam as pastas…
Lutaram muito.
E uma luta desconhecida.
Essas histórias sempre mexem muito com o nosso lado emocional, por isso eu gostaria de encerrar essa entrevista deixando um espaço aberto para que a senhora comentasse qual o seu sentimento diante desse trabalho.
Eu acho só que é tudo muito triste, é lamentável e eu acho que isso é o mínimo que pode ser feito diante da injustiça de ter uma pessoa morta por uma opinião crítica e ainda por cima não poder enterrar.
Eu fico muito sensibilizada.
A gente faz todo o esforço necessário para atuar nisso porque eu acho que é muito importante entregar para os familiares.