texto, fotos e vídeo: Daniel Guedes Só se sabia que hoje era dia de jogo do Brasil por conta das bolas de festa amarelas e azuis em meio aos destroços.
Neste domingo, Palmares, município da Zona da Mata a 120 quilômetros do Recife, só conseguia saber daquilo que estava ao alcance de todos os sentidos: destruição.
Depois que a água da chuva e da enchente desceu, surgiu o cenário que só se imagina ver depois de uma guerra ou de um terremoto.
A cidade de 56.643 habitantes está destruída.
Por todo lado há lama, lixo, animais mortos, comida podre e drama.
Drama de quem perdeu absolutamente tudo.
Drama de quem não contém as lágrimas.
Drama de quem já não consegue chorar.
De quem só é capaz de olhar literalmente para o nada e se perguntar: por onde recomeçar?
A resposta é difícil e, se realmente existir, deve estar debaixo das pedras, da terra e da sujeira.
Andar por Palmares só se for enfiando fundo os pés na lama. É humanamente necessário parar a cada esquina.
Cada morador quer contar sua história, dividir sua dor.
Cada um, nativo ou visitante, precisa olhar e refletir por um tempo para acreditar que realmente aquilo tudo é verdade.
Diante de supermercados destruídos, mãos nervosas de crianças catam iogurtes na lama.
Encontradas as embalagens sujas e obviamente mal conservadas, basta lavá-las na água barrenta e pronto.
Está garantantido o que, durante sabe-se lá quanto tempo, será uma refeição de luxo numa terra em que tudo está perdido.
Logo na entrada da cidade, a ambulante Maria José de Lira, 37 anos, só consegue chorar.
Na casa onde vivia com os dois filhos e o marido, só se conjuga verbo no passado.
Nada sobrou, senão algumas paredes.
Para onde ir?
Ela não sabe. “Vamos ter que derrubar tudo e começar do zero, não é?
O que fazer?
Na quinta-feira, quando a água começou a subir, colocamos tudo no forro do teto.
Mas a água chegou até lá.
Não deu para levar nada.
A roupa que estou usando foi doada.
Não temos nada”. » VEJA A COBERTURA COMPLETA DAS CHUVAS EM PERNAMBUCO O comerciante José Alain Melo e Silva, 40, vai arcar com o prejuízo dos eletrodomésticos que venderia e com o dos clientes que deixaram aparelhos para consertar. “Perdi tudo.
Não consegui salvar absolutamente nada.
Calculo meu prejuízo em R$ 30 mil”, diz, misturando a lama do rosto com lágrimas.
Continuar andando pela cidade é ver - e sentir - ainda mais desgraça.
O mau cheiro aumenta na proporção em que animais mortos e comida podre emergem na lama.
Para quem não conhece a cidade saber que nos últimos 60 anos existia na Rua Visconde do Rio Branco o Ginásio Municipal Fernando Augusto Pinto Ribeiro só é possível porque se consegue ver as bancas no meio dos escombros.
Mais de 1.500 alunos do ensino infantil ao superior vão ter que interromper o aprendizado por muito tempo.
Em frente à prefeitura, a Praça Ismael Gouveia ganhou um lago barrento de cinco metros de profundidade.
O chão se abriu.
As águas do Rio Una arrastaram para a vala um carro de passeio e uma carreta, da qual, de cabeça para baixo, só se vê metade das rodas.
Na mesma praça, os postes e as árvores foram arrancados.
As casas que restaram de pé têm lixo pendurado no piso superior.
A fiação elétrica virou um varal de todo tipo de objetos: camas, cadeiras, colchões, sacolas, plantas…
Numa ironia trágica, um troféu também estava pendurado, sabe-se lá que vitória comemorando.
O mototaxista Fernando Pereira, 45, que cresceu ali, viu tudo se desfazer em instantes.
Ainda conseguiu salvar a vida de vizinhos. “Consegui resgatar algumas pessoas.
Peguei uma senhora de 97 anos de cadeira de rodas.
Levantei ela pelos braços.
Ajudei outra senhora, quatro crianças e até um bombeiro”, orgulha-se, no meio da tragédia.
Dando a volta na praça, chega-se à beira do agora calmo Rio Una.
Querer encontrar algo de pé por lá é pedir muito.
Durante sua quinta-feira de fúria, o rio carregou de suas margens, sem piedade, caminhões, parte da igreja e da Câmara Municipal e dezenas de casas.
Uma delas foi a do fabricante de colchões Luiz Bento da Silva, 66, que há 30 anos mora naquele local e já passou pelas cheias de 1975 e de 2000.
Mas nenhuma foi como a de 17 de junho de 2010.
Desta vez, apenas a parede da cozinha aguentou.
Engana-se quem pensa que depois dessa ele vai juntar o que conseguiu salvar e abandonar seu intempestivo vizinho caudaloso. “Assim que puder eu volto para cá.
Vou construir minha casa de novo.
Não tenho para onde ir.
Vivo com um salário mínimo, meu filho”.
E assim, aos poucos, os moradores vão varrendo, lavando, escovando, catando.
Em silêncio, tentam trazer à vida uma cidade que foi violentada e por algum tempo será apenas ruínas. » Veja como ajudar os desabrigados