Por Saulo Moreira* Estava demorando, mas aconteceu de novo.
A Celpe voltou ao centro da discussão eleitoral.
Em prejuízo do bom debate, tem sido assim nas últimas campanhas. É uma pena que se olhe tanto para o retrovisor quando existem demandas urgentes nos saltando aos olhos todos os dias.
Em 2002, o então governador Jarbas Vasconcelos, com o caixa estadual capitalizado como nunca e promovendo várias obras de infraestrutura em Pernambuco, se reelegeu defendendo a privatização que acontecera quase três anos antes, no início de 2000.
Em 2006, findo o dinheiro da venda, o assunto voltou à tona.
Candidato a governador, Eduardo Campos soube tirar proveito político dos altos reajustes promovidos pela empresa.
Colocou a culpa no governo Jarbas e, assim, pôs mais um pesado fardo sobre as costas de Mendonça Filho que, apoiado pelo ex-governador, tentava se eleger chefe do Executivo estadual.
Como todos sabem, Eduardo venceu a parada.
Agora, a poucos meses da eleição, Eduardo tenta se reeleger e, com larga vantagem nas pesquisas, fica calado e evita o confronto.
Seu principal adversário, no entanto, ressuscitou o assunto.
Na semana passada, em entrevista na Rádio Jornal, Jarbas falou sobre a Celpe.
Confesso que não entendi seu posicionamento.
Entre outros pontos, Jarbas disse que quem privatizou a Celpe não foi ele e sim seu antecessor, Miguel Arraes. “A Celpe foi privatizada por doutor Miguel Arraes de Alencar.
Quando eu assumi o governo, em 1999, já encontrei tudo isso (hora, data e gestor do leilão, o BNDES) escolhido e dei segmento”.
Jarbas não está mentindo, diga-se logo de antemão.
Apenas faz uso de um sofisma.
Lança ao ar um raciocínio propositadamente dúbio e inacabado para distorcer a verdade em seu favor.
A exemplo do tucano Geraldo Alckmin no pleito presidencial de 2006, Jarbas tenta se livrar da pecha de privatista pois sabe que o brasileiro médio tem antipatia das privatizações.
Alckmin vacilou em defender Fernando Henrique Cardoso, grande artífice da desestatização no Brasil.
Preferiu negar que, uma vez eleito, venderia Caixa Econômica, Banco do Brasil e Petrobras.
Caiu, portanto, na armadilha do PT e perdeu a eleições para Lula.
Jarbas comete o mesmo erro e assim flerta com a incoerência.
Ora, do litoral ao São Francisco, passando pela Zona da Mata, Agreste e Sertão, todos sabem que quem vendeu a Celpe foi Jarbas de Andrade Vasconcelos.
Aconteceu em 17 de fevereiro de 2000, às 10h05, na Bolsa de Valores do Rio de Janeiro.
Eu estava lá.
Eu estava lá e vi a decepção nos olhos do governador na véspera do leilão quando ele soube, via assessores, que a empresa norte-americana Utilicorp, na contramão das expectativas, não mais tinha interesse da companhia pernambucana.
Jarbas ficou frustrado porque apenas um grupo, liderado pela espanhola Iberdrola, participaria do leilão, afastando, assim, a possibilidade de um ágio que de certo seria muito bem-vindo às finanças estaduais.
Realmente deve ter sido duro vender a Celpe pelo preço mínimo.
Nos últimos meses, Jarbas havia se empenhado pessoalmente em divulgar a empresa no exterior.
Ao lado de Mendonça Filho e do economista Aloísio Sotero, havia rodado o mundo tentando atrair investidores.
Paralelamente a isso, comparecia a reuniões no BNDES e elaborava um edital de privatização que garantisse investimentos em eletrificação rural e numa termelétrica, a Termopernambuco.
Bom, decepções pontuais à parte, o leilão foi realizado.
E graças a ele, entraram quase R$ 2 bilhões na conta do Estado.
Para ser exato, R$ 1,78 bilhão (mas tem a remuneração bancária, é bom lembrar).
Com este dinheiro, Jarbas promoveu o maior programa de obras hídricas no interior do Estado, duplicou a BR-232, restaurou e construiu outras rodovias, capitalizou a previdência estadual, amortizou a dívida pública, criou o Porto Digital e por aí vai.
Ao vender a Celpe, também livrou os pernambucanos das ingerências políticas que, ano a ano, sugavam o caixa da então estatal de energia.
Ainda que numa escala mínima, pode-se dizer que a privatização da Celpe retirou um pouco do patrimonialismo que tanto mal nos faz.
Para quem não lembra, gestões após gestões, a Celpe estatal era sempre chamada a socorrer o caixa do governo de turno via empréstimos, antecipação de receitas tributárias etc.
A Celpe estatal não tinha compromisso com a eficiência, não cumpria metas, prestava um serviço bom, mas aquém do que deveria.
Portanto, o que Jarbas deveria dizer era: “Eu privatizei a Celpe, eu fiz este bem para Pernambuco, eu organizei as contas de Pernambuco porque tive dinheiro para investir.
E tive dinheiro para investir porque vendi a Celpe”.
E ponto final.
Seria honesto, verdadeiro.
Mas, não.
Com a visão turvada pelo imediatismo eleitoral, Jarbas rejeita os louros que são seus e se apega a um filigrana legal para dizer que foi Arraes quem privatizou a empresa.
Não foi.
Miguel Arraes, de fato, enviou e aprovou uma lei estadual que permitia a venda de ações da empresa.
Foi em 1997. À época, a maioria dos governadores vendia parte das ações das companhias estaduais ao BNDES, que antecipava o dinheiro da privatização que viria.
Arraes sempre foi um nacionalista.
Relutou em fazer a operação, relutou em enviar a lei.
Arraes queria a Celpe sempre embaixo do manto do Estado, com todas as distorções já citadas aqui.
Ele só contrariou seu ideário e deu o primeiro passo na tentativa de vender 40% das ações da empresa porque Pernambuco estava quebrado.
Precisava urgentemente de dinheiro para pagar despesas correntes, principalmente servidores.
A situação era mesmo dramática, mas Arraes não conseguiu vender as ações.
E não conseguiu porque Mendonça Filho, Marco Maciel e o próprio Jarbas, todos aliados de FHC, sentido-se na iminência de retomarem o poder estadual, agiram politicamente em Brasília.
Temiam que, privatizada a Celpe na gestão Arraes, o dinheiro fosse aplicado em outras despesas que não exatamente em investimentos.
Não quero abusar da sua paciência, leitor, mas vale retroceder um pouco mais.
Pernambuco só estava quebrado porque já havia começado a resgatar os títulos emitidos em 1996, na chamada operação dos precatórios.
Ao pagar a primeira parcela das letras do Tesouro, o Estado passou de superavitário a deficitário.
Não tinha mais como honrar contratos.
A folha de pagamento atrasava e empresas trocavam Pernambuco por outros Estados.
Foi neste ambiente pesado e negativo que Miguel Arraes abriu mão de sua ideologia para, numa derradeira tentativa de melhorar a situação, vender parte das ações da Celpe.
Seu fracasso neste sentido pode ser visto de três maneiras: A) Arraes foi vítima de perseguição por parte do governo federal e por isso não conseguiu vender as ações; B) O fracasso de Arraes neste sentido foi a melhor coisa que podia acontecer para Pernambuco, uma vez que, se ele conseguisse, os efeitos positivos da privatização naquele momento seriam muito menores ou C) As opções A e B estão corretas.
Este que vos escreve assinalaria sem medo a letra C.
De toda forma, o avanço de Arraes em matéria de privatização da Celpe nem de longe pode ser comparado ao que Jarbas realizou neste sentido.
O curioso nessa história toda é que enquanto um tinha vergonha da privatização, mas tentou vender um pedaço da Celpe, o outro, que vendeu de fato e de direito, só começa a ter vergonha dez anos depois.
Saulo Moreira (smoreira@jc.com.br) é editor de Economia do Jornal do Commercio