Yoani Sánchez diante da lei Por Eduardo Cesar Maia, na página de Opinião de hoje do JC “Diante da Lei está um guarda.

Vem um homem do campo e pede para entrar na lei.

Mas o guarda diz-lhe que, por enquanto, não pode autorizar-lhe a entrada.

O homem considera e pergunta depois se poderá entrar mais tarde. – “É possível” – diz o guarda. - ”Mas não agora!”.

O guarda afasta-se então da porta da lei, aberta como sempre, e o homem curva-se para olhar lá dentro.

Ao ver tal, o guarda ri-se e diz. – “Se tanto te atrai, experimenta entrar, apesar da minha proibição.

Contudo, repara, sou forte.

E ainda assim sou o último dos guardas.

De sala para sala estão guardas cada vez mais fortes, de tal modo que não posso sequer suportar o olhar do terceiro depois de mim”.

Acima, na tradução de Torrieri Guimarães, está o primeiro parágrafo da breve narrativa intitulada Diante da lei (conto de O processo, de Kafka).

Eu nunca soube explicar a mim mesmo o fascínio que sinto por esse texto.

Talvez o mais impressionante nele seja a capacidade que o autor teve de construir um clima fantástico, misterioso, com personagens estranhos e sem nomes, mas que, ao mesmo tempo, consegue nos convencer, sem reservas, de sua “realidade”.

Suspendemos, naturalmente, nossa “descrença”, e participamos – espantados e atentos – da história de um homem comum que queria ter acesso à lei, que, como se sabe, deveria estar aberta a todos.

Passemos agora a outra narrativa (que não é de Kafka, mas tem natureza kafkiana): “A funcionária do escritório de imigração do governo chama a próxima pessoa da lista de atendimentos do dia: “Yoani?”.

A dona do nome incomum, uma mulher de 34 anos, aproxima-se e diz: “Bom, vim aqui para saber se revogaram a minha proibição de viajar, que já dura um ano”.

A resposta é imediata: “Ainda não pode viajar”.

A solicitante retruca: “E quando será que esta proibição cairá?

Tem alguma ideia?” “Proibição?”, espanta-se a atendente. “Bom, se eu não posso entrar em um avião, isso é uma proibição”, responde. “Ainda não está autorizada a viajar”, repete a atendente. “E por qual razão?”, indaga a mulher. “A razão eu não sei”.

Buscando alguma explicação racional, a requerente insiste, “Eu não tenho nenhuma ação pendente, nem tenho nenhum processo nos tribunais.

Eu só quero saber se essa proibição é infinita.

Se algum dia eu poderei sair do país, se sigo tentando, como faço?”. “Por ora, você não pode viajar”, reafirma a atendente.” A personagem acima não nasceu da fantasia de nenhum escritor e não faz parte de uma fábula que denuncia a opressão do indivíduo pela irracionalidade burocrática ou por um estado autoritário, como no conto de Kafka.

A cubana Yoani Sánchez é gente “de verdade” e o diálogo de fato aconteceu (foi gravado por ela mesma e pode ser ouvido na internet).

Yoani, 34 anos, tornou-se famosa pelo blog Generación Y (desdecuba.com/generaciony), que mantém, apesar das perseguições e dificuldades em Cuba.

No único lugar que encontrou para se expressar, Yoani posta crônicas sobre as dificuldades diárias do cubano e sobre o clima de intimidação em que vive.

Atualmente sua página na internet foi bloqueada pelo governo e só pode ser acessada fora de Cuba.

No entanto, ao contrário do humilde homem do campo do conto de Kafka, que mal sabia se expressar e clamar por seus direitos, a blogueira cubana, graduada em filologia e hábil com as palavras, não se cala diante das autoridades e pede por explicações racionais: “Vocês estão violando os meus direitos como cidadã: sair e entrar no país.

E isso é muito grave, que uma instituição militar negue a um cidadão civil um direito fundamental… É como o direito à educação e à comida”, insiste a mulher diante da funcionária do governo. “Por ora, você não pode viajar”, é mais uma vez a resposta que recebe. “Sim, é isso que eu tenho ouvido.

Mas eu quero ouvir alguém que tomou a decisão e tenha a resposta definitiva”, diz. “E eu a estou dando”, responde a atendente (o diálogo ainda continua, mas a resposta da funcionária é sempre a mesma).

Com 49 quilos e 1,64 metro, a aparentemente frágil Yoani segue em Havana, com o marido e o filho.

Reconhecida e premiada internacionalmente por seus textos e por sua inabalável resistência intelectual e moral, ela já solicitou em diversas ocasiões – e segue solicitando – o visto de saída do país, mas nunca obteve sucesso (não recebeu nenhum dos seus prêmios no exterior)… Yoani ainda espera diante da lei.

Eduardo Cesar Maia é jornalista