O artigo “Voluntários da pátria” foi publicado hoje (06) na coluna do jornalista Zuenir Ventura no jornal O Globo: Zuenir Ventura: Voluntários da pátria “Em meio a tantas perdas humanas e materiais, a tanta dor e luto, a tragédia de Angra e Ilha Grande deixou pelo menos algumas histórias edificantes.
Exemplos de quem se salvou e, não satisfeito, arriscou a vida para salvar os outros.
Assim foi o caso do estudante Cristiano Dayrell, de 18 anos, ou do advogado Felipe Gomes Martins, de 32.
O rapaz acordou com o quarto sendo invadido por pedras e lama e arrastado pela enxurrada. “Saí por um buraco no telhado” - ele e alguns dos colegas que dormiam no mesmo lugar. “Depois voltamos para tentar salvar os outros.
Puxamos primeiro o Eric, depois a Luciana e, por último, a Natasha.” Hospedado numa casa vizinha à Pousada Sankay, o advogado, por sua vez, levou toda a família - oito pessoas - para um barco e daí para um lugar seguro.
E voltou. “Fizemos cinco ou seis viagens e resgatamos umas 50 ou 60 pessoas” - ele, um morador e o pai, Manuel Martins, um senhor de 62 anos, o que demonstra que gestos como esse não são exclusividade do arrojo e da generosidade apenas dos jovens.
O que leva as pessoas a fazerem isso?
Em 1966, Arnaldo Jabor, então meu vizinho na Urca, bateu uma manhã em minha casa para que fôssemos recolher na sua velha Kombi e levar para a PUC colchões e mantimentos para os desabrigados do temporal que caíra sobre a cidade, inundando ruas, derrubando barracos e matando pessoas.
A motivação era também ideológica.
Fazia parte do ideário político da época: era correto ajudar o “outro”.
Mas hoje, em pleno reino do egoísmo, em que valores como solidariedade estão em desuso e costumam ser interpretados como demagogia ou pieguice, como explicar essas atitudes desinteressadas de sacrifício e entrega?
Sei que o voluntariado não é um fenômeno brasileiro, existe em toda parte, como movimento e organização.
Lá mesmo na Costa Verde, as pessoas se uniram para recolher e distribuir donativos.
Mas não é disso que estou falando; falo desses impulsos isolados que se transformam em pequenos atos de heroísmo: alguém que está passando e salta perigosamente num rio revolto para retirar um náufrago ou que se arrisca a entrar num prédio em chamas para salvar quem nem conhece.
Não sei quais são as razões, mas não tenho dúvida de que são vitórias do bem num mundo em que a gente tende a acreditar que quem venceu foi o mal.
Nessa confusão toda em que ministros ameaçam se demitir com medo da verdade (e não se está propondo revanchismo nem revogação de lei), vale a pena ouvir Cecília Coimbra, do Tortura Nunca Mais: “[os militares] deveriam ser os primeiros a esclarecer tudo.” E Cezar Britto, presidente da OAB: “Um país que se acovarda diante de sua própria história não pode ser levado a sério.” Como se sabe, anistia e amnésia têm a mesma raiz, mas uma significa perdão e a outra, esquecimento.
Perdoar, sim, esquecer, jamais.