Por Ruy José Guerra Barretto de Queiroz Muitas são as transformações sociais e econômicas provocadas pelos recentes avanços tecnológicos sobretudo na área da tecnologia da informação e das comunicações.

O que dizer da educação e do aprendizado, cujos princípios básicos foram concebidos no seio da chamada era industrial, considerando as demandas atuais da chamada sociedade da informação e do conhecimento?

Já em 2005, num relatório publicado no portal do ERIC (uma biblioteca digital online de pesquisa em educação mantida pelo Instituto de Ciências da Educação do Departmento de Educação dos EUA), David Williamson Shaffer e James Paul Gee argumentam que a juventude americana de hoje, ao invés de receber educação para o pensamento criativo e inovador, ainda está sendo preparada para os chamados “trabalhos de commodity” em um mundo que, muito em breve, premiará apenas aqueles que consigam produzir trabalho inovador, punindo aqueles que não tenham condições de fazê-lo.

O contraste aqui é entre o “trabalho de commodity” e o “trabalho inovador”.

Uma “commodity”, termo em inglês usado como referência aos produtos de base em estado bruto (matérias-primas) ou com baixo grau de industrialização, de qualidade quase uniforme, produzidos em grandes quantidades e por diferentes produtores, é um produto ou serviço padronizado disponível a uma audiência de massa a um preço razoável.

O chamado “velho capitalismo”— da indústria, da manufatura, das linhas de montagem, das grandes corporações, do mundo pós-2ª.

Guerra, e que foi bem sucedido na geração de uma enorme classe média nos EUA—foi construído com base na produção e venda de commodities. “No entanto, num mundo onde a ciência e a tecnologia necessárias para produzir commodities se espalhou por todo o globo, a competição para gerar riqueza através de commodities é feroz como nunca,” afirmam Shaffer & Gee.

Daí, o trabalho de geração de riqueza através da produção de commodities tem se deslocado para os centros de produção de baixo custo, onde há trabalhadores dispostos a receber baixos salários.

Segundo o relatório, intitulado “Before Every Child Is Left Behind: How Epistemic Games Can Solve the Coming Crisis in Education”, o problema está sendo exacerbado pelo que os autores chamam de novo hiato de desigualdade social, no qual alguns estudantes têm acesso em casa a tecnologias das quais necessitam para se prepararem para a vida num mundo digital, porém muitos não têm. (O título do artigo faz referência à lei americana de reforma educacional “No Child Left Behind Act” de 2001, proposta pelo governo de George W.

Bush, mas que recebeu apoio de ambos os partidos e foi capitaneada pelo democrata Ted Kennedy.) O problema é agravado ainda mais em decorrência das políticas educacionais em vigor nos EUA que se concentram em dar aos alunos habilidades padronizadas para que possam ser bem sucedidos em testes padronizados, ao invés de uma preparação para o pensamento criativo e o trabalho inovador.

Conforme Shaffer & Gee, é preciso ir além da dicotomia “liberal versus conservador”, aqui caracterizada pela educação construtivista versus a educação tradicional.

A boa notícia é que as mesmas tecnologias que têm propiciado essa crise na educação têm o potencial para nos levar a uma solução, e a proposta dos autores são os “jogos epistêmicos”.

Segundo o portal “Epistemic Games”, jogos epistêmicos são videogames que ajudam os jogadores a aprender as formas de pensar, isto é, as epistemologias, da era digital: pensar como engenheiros, urbanistas, journalistas, advogados, ou outros profissionais inovadores.

A idéia é que os jogadores têm a chance de ver como é viver no mundo dos adultos, ganhando a oportunidade de imaginar o que poderia vir a ser algum dia.

Na relação de projetos do grupo de pesquisas de Shaffer destacam-se: (i) Digital Zoo, onde jogadores se tornam engenheiros biomecânicos; (ii) Urban Science, no qual jogadores se engajam nas práticas profissionais do planejamento urbano e aprendem como se tornarem pensadores ecológicos; (iii) Journalism.net, onde o jogador se torna repórter para uma revista online; (iv) The Pandora Project, onde os jogadores agem como negociadores poderosos, decidindo o destino de uma controvérsia médica real concernente à ética de transplantar órgãos de animais para humanos.

Em sua apresentação no “Eduverse Symposium 3” em Amsterdam em Set/2008, Shaffer argumenta que “jogos criam mundos” e que “um jogo é sempre uma cultura”.

Com efeito, é cada vez maior a relação de videogames bem sucedidos, de crítica e de público, que de fato permitem a criação de mundos virtuais: Spore (lançado em 2008 pela Electronic Arts, permite que o jogador controle o desenvolvimento de uma espécie por ele criada desde suas origens como um organismo microscópico, passando por sua socialização, chegando até sua possível exploração interestelar), Zoo Tycoon (liberado em 2004 pela Blue Fang Games, tem como objetivo criar um zoológico virtual com todos os aspectos definidos pelo jogador, desde os animais até a administração ambiental e financeira do empreendimento), FarmVille (lançado em Junho de 2009 pela Zynga, nele o jogador tem que administrar uma fazenda, cultivando a terra e criando animais, de modo a fazer o empreendimento crescer e ser autossustentável) .

A idéia é que, enquanto que para participar de uma determinada cultura é preciso ser detentor de um certo conhecimento, de algumas habilidades, e de certos valores, cada membro precisa compartilhar a epistemologia daquela cultura.

E essa epistemologia inclui a forma pela qual decisões são tomadas e ações são justificadas.

Daí os jogos desenvolvidos sob tal rationale receberem a denominação de jogos epistêmicos de forma a diferenciá-los de outros jogos educacionais.

Em poucas palavras, jogos epistêmicos se caracterizam por ensinar um certo método de pensar, juntamente com a própria reflexão sobre os resultados de se pensar daquela maneira.

Ao mesmo tempo que permitem que o jogador manipule criativamente um mundo virtual, esses jogos têm a virtude de estimular a criatividade e a inovação, habilidades fundamentais no mundo competitivo da economia global.

O que ocorre, segundo Shaffer & Gee, é que num mundo centrado em torno da mídia e do entretenimento como é o mundo de hoje, a inovação não se dá apenas em ciência e tecnologia, mas também em arte, psicologia, e comunicações.

E aí a inovação ultrapassa as fronteiras das disciplinas tradicionais do aprendizado escolar, e os postos de trabalho do futuro serão em áreas como projeto gráfico onde ciência e arte se encontram.

Os fundamentos para a inovação têm que ser plantados desde o início.

Dominar linguagens técnicas complexas (como a linguagem da química ou do desenho gráfico), sistemas simbólicos complexos (como, por exemplo, da matemática não-linear), e práticas complexas (tais como a engenharia de locais de trabalho ou ecossistemas) deveria começar bem antes da universidade, possivelmente no ensino fundamental.

Na introdução de seu livro “How Computer Games Help Children Learn” (Palgrave Macmillan, 2008) Shaffer & Gee lembram que em 1980 Seymour Papert publicou seu bestseller “Mindstorms” no qual argumentava que o computador poderia ser usado para ajudar a criança a aprender fazendo coisas estimulantes, de algum significado algo para ela, e por caminhos diferentes.

Hoje, três décadas depois, o computador pode ser uma ferramenta fundamental no aprendizado do pensamento criativo e inovador.

Há que se caminhar com cautela, naturalmente, mas é inegável que o videogame tem a capacidade de envolver a criança, e isso pode ser usado em favor do aprendizado.

Vale lembrar um provérbio chinês antigo, atribuído a Confúcio (500 a.C.): “Diga-me e eu esqueço.

Mostre-me e eu me lembro.

Envolva-me e eu entendo.” PS: Ruy é professor associado do Centro de Informática da UFPE e escreve para o Blog sempre às segundas.