Na Veja desta semana No dia 4 de setembro de 2006, no auge da eleição para o governo do Distrito Federal, José Roberto Arruda encaminha-se até o escritório do delegado aposentado Durval Barbosa, então secretário do governo e seu coordenador de campanha.
Ele aperta a mão de Durval e lhe dá um tapinha nas costas: “Meu presidente!”.
Arruda acomoda-se gostosamente no sofá, dá um profundo suspiro e pede um chazinho à secretária.
Tira do bolso um papelzinho e diz a Durval: “Queria ver quatro coisinhas com você.
Só posso pedir para você porque é algo pessoal”.
Arruda começa pela corrupção miúda, pedindo a Durval que consiga emprego para o filho dele numa das empresas que mantêm contratos com o governo.
Depois abusa um pouquinho mais e recomenda que o delegado “ajude” a empresa de um amigo.
Finalmente pergunta sobre o financiamento para a campanha. “Estou medroso com esse troço”, diz Arruda.
Durval tenta tranquilizá-lo: “A gente só não pode internalizar o dinheiro”.
Ato contínuo, Durval abre o armário, pega um pacote com 50 000 reais e o entrega a Arruda. “Ah, ótimo”, agradece o candidato.
Num lapso de 23 minutos e 45 segundos, com o equipamento do ladino Durval e a desfaçatez de Arruda, produziu-se o primeiro capítulo da mais devastadora peça de corrupção já registrada na história do país.
Talvez encantado com o espírito do Natal que se aproxima, Arruda veio a público na semana passada para dizer que, sim, ele recebeu o pacotão de dinheiro que aparece no vídeo - mas que, por nobreza de coração, usou os recursos na compra de panetones para os pobres que habitam a periferia de Brasília.
Nem Papai Noel acreditou.
A burlesca cena protagonizada por Arruda está num dos trinta vídeos entregues por Durval aos promotores do Ministério Público do Distrito Federal, aos quais VEJA teve acesso na íntegra (assista a uma seleção dos vídeos exclusivos).
Ele também forneceu documentos e prestou um minucioso depoimento, expondo as vísceras do esquema de corrupção chefiado por Arruda e pelo empresário Paulo Octávio, vice-governador de Brasília.
Até o início da crise, o ex-delegado era secretário de Relações Institucionais - uma espécie de embaixador da corrupção do governo de Brasília.
Cabia à turma dele coordenar as fraudes nas licitações do governo, achacar os fornecedores e repassar o butim a Arruda e Paulo Octávio, distribuindo o restante da propina aos deputados da base aliada na Câmara Legislativa do DF.
Ou seja, uma versão brasiliense e democrata do mensalão petista.
A colaboração de Durval, que espera com isso receber um perdão judicial, resultou na Operação Caixa de Pandora, deflagrada há uma semana pela Procuradoria-Geral da República e pela Polícia Federal, na qual se apreenderam, nos escritórios da quadrilha, documentos e cerca de 700 000 reais em dinheiro vivo.
Os promotores calculam que a quadrilha do panetone tenha desviado dos cofres públicos a formidável soma de 500 milhões de reais - de modo que os pobres de Brasília, graças quem sabe às orações da propina divulgadas por Durval, devem desfrutar um gordo Natal neste ano.
Inexiste quantia, contudo, que supere a força simbólica de uma imagem como a do governador Arruda recebendo um bem fornido maço de notas de 100 reais.
Não é à toa que as produções de Durval se tornaram hits instantâneos na internet e correram as televisões do mundo: nunca se registrou com tamanha precisão, muito menos de maneira tão límpida e pedagógica, a ilimitada capacidade dos políticos de ignorar os mínimos princípios de dignidade pública.
O sentimento de repulsa é inevitável.
Essa indignação apareceu graças ao talento dramatúrgico do obstinado Durval.
Durante anos, ele gravou com esmero as estripulias cometidas pelos maganos dessa máfia.
Além da participação especialíssima de Arruda, o Generoso, aparecem nos filmes deputados, empresários, jornalistas, lobistas, burocratas, assessores.
São filmes ricos em elenco - e, sobretudo, em conteúdo.
Todos foram rodados nos escritórios do diretor Durval.
O enredo é sempre o mesmo.
Os personagens procuram o delegado em busca de dinheiro e favores.
O final é igualmente previsível.
Como se descobriu nos últimos dias, os coadjuvantes sempre dão um jeitinho de sair de lá com dinheiro - seja nas meias, na cueca, na bolsa, no paletó (veja os quadros).
Antes de embolsarem o cachê, esses bufões da corrupção combinam negociatas e trocam confidências sobre os esquemas de cada um.
Enquanto eles riem, só resta à plateia chorar: toda essa deprimente patuscada é paga com nosso dinheiro.
As gravações demonstram que Durval era o gerente da quadrilha, intermediando negociatas entre a cúpula do governo e as empresas que sobrevivem de contratos públicos.
Num dos vídeos inéditos, gravado no dia 14 de outubro deste ano, Geraldo Maciel, assessor de Arruda, encaminha a Durval as determinações do governador.
Maciel conta que Arruda ordenou a contratação da Brasif, empresa ligada ao DEM. “Esse pessoal vai assumir os compromissos com você”, explica o assessor de Arruda. “Compromissos”, na linguagem da quadrilha, significa propina. “Ele (Arruda) é quem decide”, responde o delegado.
Em seguida, os dois acertam como será direcionada a licitação para contratar a Brasif - e como será o rateio. “O que ficaria livre para ele?”, pergunta Maciel, numa referência a Arruda. “Um e duzentos”, esclarece Durval.
Um milhão, claro.
Pobre Durval.
Numa das conversas, Maciel, o assessor de Arruda, desabafou: “Não aguento mais o Leonardo Prudente no meu pé.
Ele quer entrar em todas”.
Prudente é aquele deputado que guardou os maços de dinheiro na meia - e que aparece em outro vídeo, mas neste estocando dinheiro num envelope, pelo menos.
Deve ter sido a única vez na qual Prudente foi… prudente.
Na operação de busca e apreensão, quando os policiais estiveram em sua casa, o deputado tentou esconder sua fortuna de todas as formas.
Prometeu até colaborar - mas os agentes flagraram o caseiro dele correndo na rua com uma sacola abarrotada de dinheiro. “Tudo bem, vou mostrar”, anuiu Prudente, revelando aos policiais o esconderijo dos 80 000 reais que guardava em casa - a banheira de hidromassagem.
Os quadrilheiros seguiam um rígido código de conduta - quem se desviasse dele, como o voraz deputado das meias, transformava-se num pária.
Nos vídeos, Durval deixava claro quais eram as regras do jogo: “Não pode levar para casa.
Isso é uma distorção.
Não é democrático.
Tem que ajudar os outros”.
Para a turma do panetone, a comunhão da propina era uma obrigação moral.
O publicitário Abdon Bucar, que fez a campanha de Arruda, presta serviços para o DEM e detinha contratos com o governo de Brasília, reclama de 1 milhão de reais que caíram na conta dele - caíram para ser lavados e sair de lá limpinhos. “Meu contador disse que vou ter de arranjar outra nota, que a última deu problema”, explica o publicitário.
Ele reclama do atraso na parte que lhe é devida.
E avisa: “Vou arrochar os caras”.
Logo depois, cobra “os 750 000 do PFL”.
Durval, como sempre, ouve a reclamação com paciência e promete resolver.
Depois de anos gravando e operando a corrupção, e ameaçado por 32 processos na Justiça, Durval negociou a delação premiada com o Ministério Público, por meio do jornalista Edson Sombra, um amigo dele que afirma guardar mais de uma centena de fitas envolvendo dezenas de autoridades em Brasília A implosão do esquema de corrupção montado no governo do DF provocou um abalo sísmico no DEM.
Diante das cenas chocantes, os democratas concluíram que a única saída para minimizar o prejuízo eleitoral do partido com o escândalo seria a expulsão imediata do governador.
A estratégia, porém, precisou ser alterada após uma reunião na qual Arruda ameaçou revelar segredos que aparentemente não podem ser expostos à luz do sol. “Se vocês radicalizarem comigo, eu radicalizo com vocês”, avisou o governador.
Nem todo mundo entendeu.
Não parece ter sido o caso do presidente do DEM, o deputado Rodrigo Maia, amigo de Arruda e padrinho de algumas nomeações em seu governo.
Além da suspeita de que Arruda possa ter colocado sua máquina de desvios a serviço do partido, um detalhe ainda desconhecido liga a cúpula do DEM ao epicentro do tremor.
Maia é íntimo do publicitário Paulo César Roxo Ramos, arrecadador informal da campanha de Arruda e acusado por Durval de operar a engrenagem de achaques que funcionava no governo do amigo.
A intimidade de Paulo Roxo com o presidente do partido era tal que no sábado dia 28, assim que foi divulgado o primeiro vídeo da corrupção, o publicitário correu à casa em que Maia vive em Brasília, não por coincidência alugada por outro amigo do presidente do DEM, André Felipe de Oliveira, ex-secretário de Esportes no governo Arruda.
Roxo estava preocupado com a reação de Arruda caso o DEM decidisse emparedá-lo. “Você precisa segurar o partido.
O desgaste pode ser muito maior se Arruda fizer uma besteira”, alertou.
Essa proximidade alimenta a suspeita de que a arca clandestina de Brasília pode ter contaminado o caixa nacional do partido.
Na semana passada, sob a condição de anonimato, um dirigente do DEM revelou a VEJA que pelo menos oito comitês de candidatos apoiados pelo partido nas últimas eleições municipais receberam dinheiro captado por operadores de Arruda.
O deputado José Mendonça, do DEM de Pernambuco, era um dos mais aflitos.
Ele pediu insistentemente a deputados e senadores do DEM que poupem Arruda da expulsão.