Os riscos do vice-presidencialismo Por Luiz Felipe Alancastro Têm sido bastante debatidas as convergências e as complementaridades das políticas econômicas e sociais dos governos FHC e Lula.

Pouco se disse, entretanto, sobre a estabilidade institucional assegurada pelo sistema de dois turnos e pela reeleição dos dois presidentes.

A introdução dos dois turnos ofereceu vitórias incontestes aos presidentes eleitos desde 1989.

Ainda quando foi decidida no primeiro turno, como em 1994 e 1998, a eleição garantiu a maioria absoluta dos votos válidos a FHC.

Nem sempre foi assim: a vitória de Juscelino Kubitschek em 1955, com apenas 36% dos votos válidos, desencadeou uma campanha golpista e uma grave crise política.

Votada no Congresso sob suspeita de corrupção, em vez de ser submetida à legitimidade de um referendo nacional -como defendia, entre outros, Franco Montoro-, a emenda da reeleição superou seu aleijão de nascença e demonstrou sua viabilidade.

O abandono dos projetos sobre terceiro mandato ajudou a firmar a reeleição simples no edifício político do país.

Outro ponto importante da normalização política foi a transformação do estatuto do vice-presidente.

De saída, é preciso atentar para o fato de que o Brasil parece ser o único país do mundo dotado de um sistema presidencialista multipartidário, com eleição direta de dois turnos, em que são eleitos conjuntamente o presidente e o vice-presidente.

No período 1946-1964, com eleições num turno único, seguia-se no Brasil a prática americana.

A escolha do vice-presidente concretizava a aliança que potencializava o alcance eleitoral do candidato a presidente.

Quando o vice -eleito diretamente- tinha voo próprio, como no caso de Jango, vice-presidente de Kubitschek e de Jânio, o quadro se complicava.

Com os dois turnos, as regras do jogo mudaram.

Como escreveu um autor, depois do primeiro turno, o candidato a vice-presidente é como uma bananeira que já deu cacho.

Tendo atraído a maioria dos votos que poderia puxar para seu companheiro de chapa, sua atuação não ajuda a campanha do segundo turno.

Mas pode atrapalhar os entendimentos com candidatos derrotados no primeiro.

Por esse motivo, a escolha do candidato a vice-presidente transformou-se numa operação delicada para os presidenciáveis.

Parte do sucesso dos dois mandatos de FHC e de Lula repousa, aliás, na escolha de vice-presidentes que cumpriram suas funções com relativa discrição e total fidelidade aos dois presidentes, antes e depois das eleições.

Por caminhos tortuosos, desenhou-se uma prática política e constitucional que vem assegurando a democracia e o crescimento econômico.

A aliança entre o PT e o PMDB apresenta outra relação de forças.

Caso o deputado Michel Temer venha a ser o candidato a vice-presidente na chapa da ministra Dilma Rousseff, configura-se uma situação paradoxal.

Uma presidenciável desprovida de voo próprio na esfera nacional, sem nunca ter tido um voto na vida, estará coligada a um vice que maneja todas as alavancas do Congresso e da máquina partidária peemedebista.

Deputado federal há 22 anos seguidos, constituinte, presidente da Câmara por duas vezes (1997-2000 e 2009-2010), presidente do PMDB há oito anos, Michel Temer vivenciou os episódios que marcaram as grandezas e as misérias da política brasileira.

O partido sob sua direção registra uma curiosidade histórica.

Sendo há mais de duas décadas o maior partido político brasileiro, jamais logrou eleger o presidente da República.

Daí a sede com que vai ao pote ditando regras ao PT e a sua candidata à Presidência.

Já preveniu que quer participar da organização da campanha presidencial, disso e daquilo.

No horizonte, desenha-se um primeiro impasse.

O peso do PMDB e a presença de Temer na candidatura a vice irão entravar, no segundo turno, a aliança de Dilma com Marina Silva, Plínio Arruda Sampaio (candidato do PSOL) e as correntes de esquerda que tiverem sido derrotadas ou optado pelo voto em branco e voto nulo no primeiro turno.

Levado adiante, o impasse poderá transformar a ocupante do Alvorada em refém do morador do Palácio do Jaburu.

Talvez, então, Temer tire do colete uma proposta que avançou alguns anos atrás.

O voto, num Congresso aos seus pés, de uma emenda constitucional instaurando o parlamentarismo.

Em outras palavras, complicada no governo Lula, a aliança PT-PMDB pode se tornar desastrosa num governo Dilma em que Michel Temer venha a ocupar o cargo de vice-presidente.

A declaração de Lula sobre a eventual aliança de Jesus e Judas deu lugar a um extravagante debate teológico.

Mas a questão essencial é mais terra a terra.

E só o futuro dirá se a frase de Lula terá sido uma simples metáfora ou uma funesta premonição.

PS: LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO , 63, é professor titular de história do Brasil da Universidade de Paris - Sorbonne, autor de “O Trato dos Viventes” e editor do blog sequenciasparisienses.blogspot.com.