De Giovanni Sandes/Economia/JC Como se os parlamentares brasileiros já não estivessem com sua imagem ofuscada diante de atos secretas e outros escândalos no Congresso Nacional, revelados ao longo deste ano, a Câmara dos Deputados se prepara para votar esta semana um espetacular trem da alegria: uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que contraria o que determina a Constituição Federal e que, se aprovada, efetivará 5 mil titulares de cartórios que assumiram a função sem prestar concurso público, desde 1988.

Os cartórios são herança portuguesa e nasceram para resguardar juridicamente a atividade econômica.

Mas, no Brasil, viraram herança familiar ou serviram de prêmio de consolação para candidatos derrotados em eleições.

Outro aspecto que reforça o poder político dos tabeliães, notários e registradores é sua força econômica.

Segundo o último dado anual do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 2006 eles movimentaram no País R$ 4 bilhões.

No Estado, o número é mais recente: foram R$ 97,4 milhões em 2008.

A Constituição prevê o ingresso na atividade por concurso como forma de garantir acesso igualitário aos interessados em prestar os serviços e, mais do que isso, um meio de buscar a moralidade de uma função pública que é delegada a particulares, explica Ophir Cavalcante, diretor do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

A PEC 471/2005, de autoria do deputado João Campos (PSDB-GO), seria julgada na última quarta-feira, mas teve a votação suspensa.

Se prosperar, efetivará aqueles que estão na atividade há cinco anos, contados retroativamente da data de aprovação da emenda, contradizendo o que diz hoje a Constituição.

A proposta é criticada duramente pelo CNJ, que em junho passado editou duas resoluções: uma que determina o afastamento de 5 mil tabeliães que assumiram a função sem concurso público depois de 1988 e outra que estipula regras para a realização de concursos pelos Tribunais de Justiças dos Estados.

Na última semana, o presidente do CNJ, Gilmar Mendes – também presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) –, classificou a PEC como “gambiarra jurídica” e “retrocesso”, além de, segundo ele, ser responsável por parte dos dos problemas de grilagem de terras no Brasil.

Assim como em outros Estados, a Corregedoria Geral de Justiça de Pernambuco (CGJ-PE) coleciona flagrantes de desmandos na atividade: corrupção, má-prestação de serviços e sonegação. “Os cartórios não são mais caso de Justiça e sim de polícia. É lamentável que os legisladores estejam cedendo à pressão da atividade.

O lóbi dos cartórios é muito forte no Brasil inteiro, é uma atividade que gera muito dinheiro.

Isso tem que acabar.

O País tem que passar a limpo essa situação”, reforça o diretor da OAB.

Na avaliação do presidente da Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP), Carlos Ari Sundfeld, não há qualquer justificativa para a abertura de uma exceção à realização de concursos públicos para a atividade. “É um achincalhe total (a PEC).

O Parlamento perdeu muito a conexão com o eleitorado.

Se comporta como uma espécie de autarquia.

O cálculo é que os parlamentares não têm nada a perder e ainda terão o apoio dos beneficiados”, comenta Sundfeld.

Em nota, a Associação dos Notários e Registradores do Brasil (Anoreg-BR) defende a PEC.

A entidade argumenta que foi a demora na realização de concursos pelas Justiças estaduais que “consolidou” situações que deveriam ser temporárias: “Essas pessoas correm sérios riscos de serem afastadas e perderem os cargos depois de trabalharem, investirem e aperfeiçoarem os serviços".