Por Jorge Zaverucha, na Folha de S.

Paulo O Itamaraty acelerou demais e derrapou na curva da diplomacia internacional.

Difícil acreditar que nossa diplomacia tenha sido capaz de cometer tantos erros em tão pouco tempo.

Transformar a remoção de Manuel Zelaya em um golpe de direita contra a esquerda é simplificar o ocorrido.

O acontecido é muito mais complexo, e há brechas legais passíveis de serem exploradas por qualquer um dos lados para justificar suas posições.

Curiosamente, Zelaya é patrocinado por Hugo Chávez, que, por duas vezes, tentou golpear o governo constitucional da Venezuela.

E agora reclama de golpe contra seu aliado, que nada tem de socialista.

Mas que gosta de permanecer no poder.

Por outro lado, o governo de fato hondurenho alega que Zelaya violou a Constituição do país.

Contudo, ao expulsá-lo do país à ponta de baionetas, sem o devido processo legal, o governo violou o artigo 102 da própria Constituição de Honduras: “Nenhum hondurenho poderá ser expatriado nem entregue pelas autoridades para um Estado estrangeiro”.

Portanto, não estamos assistindo a uma disputa entre democratas, mas, simplesmente, a uma contenda entre autoritários de esquerda e de direita que se fantasiam com vestes pseudoconstitucionais.

O Brasil vinha se posicionando a favor da volta de Zelaya ao poder.

Contudo, não enfatizava que ele era parte importante do projeto de poder bolivariano.

Sua volta a Honduras foi patrocinada por Hugo Chávez, o arquiteto desse imbróglio.

Dados o prestígio internacional do Brasil na região e a “neutralidade positiva” em relação a sua pessoa, Zelaya fez uma jogada esperta e audaciosa.

E o Itamaraty acabou derrapando no projeto bolivariano. Às vésperas da eleição presidencial e do término do governo provisório hondurenho, Zelaya resolveu agir.

As negociações lideradas por Óscar Arias estavam empacadas.

A OEA, sem força militar para impor uma decisão, também nada resolvia.

O tempo trabalhava contra Zelaya.

Então, ele arriscou tudo, pois nada tinha a perder.

Em manobra ousada, conseguiu usar a embaixada brasileira como escudo para avançar seus interesses.

Por que o Brasil permitiu que Zelaya entrasse na embaixada sem ser na qualidade de asilado político?

Se já é difícil explicar juridicamente a situação de Zelaya, o que dizer das dezenas de membros de sua comitiva?

Quem são eles?

Quantos são?

Quais são os direitos deles que estão em risco?

O governo brasileiro, que tanto criticou a ilegalidade da remoção de Zelaya, está contribuindo para violar claramente leis internacionais.

Em nenhum momento a Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, de 1961, estipula ser uma das funções de missão diplomática dar “abrigo humanitário” a quem está fora do Estado acreditado (artigo 3º).

Não importa discutir se Zelaya é vítima ou vilão, mas respeitar regras institucionais aceitas internacionalmente.

Ignorando-as, como pode o Brasil reivindicar um assento no Conselho de Segurança da ONU?

A embaixada brasileira deveria receber Zelaya na qualidade de asilado.

Mas é isso exatamente o que Zelaya não quer, pois implicaria sua saída de Honduras.

O que Zelaya ambiciona é ficar em território hondurenho protegido pelos privilégios e pelas imunidades dos diplomatas brasileiros.

Seu objetivo é transformar a Embaixada do Brasil em escritório político e lá ficar o máximo possível.

Por quanto tempo?

Isso interessa ao Brasil?

O peruano Haya de la Torre ficou na embaixada colombiana em Lima, entre 1949 e 1954, só que como asilado político.

Portanto, a comparação não procede.

A ação de Zelaya é um meio para obter seu fim.

Mas que o governo brasileiro dê guarida aos seus atos é outra história.

E mais: de dentro da embaixada, Zelaya passou a fazer comício contra o atual governo hondurenho e disparou ligações telefônicas para seus aliados.

Ou seja, está imiscuindo-se em assuntos internos de Honduras, e isso não tem respaldo no direito internacional (vide artigo 41 da Convenção de Viena).

Nova derrapagem do Itamaraty.

O estrago diplomático já foi feito.

Está na hora de o Brasil rever seu comportamento.

O Congresso Nacional precisa discutir realisticamente o ocorrido.

O assunto é muito sério para deixá-lo apenas nas mãos do Poder Executivo.

PS: JORGE ZAVERUCHA , doutor em ciência política pela Universidade de Chicago (EUA), é coordenador do Núcleo de Estudos de Instituições Coercitivas e da Criminalidade da Universidade Federal de Pernambuco. É autor de “FHC, Forças Armadas e Polícia: Entre o Autoritarismo e a Democracia”, entre outras obras.