Lula, como nunca antes…
Num trabalho de pesquisa magnífico, o jornalista Ali Kamel reúne as falas do presidente. É o verbo a espelhar o homem Mario Sabino Lalo de Almeida/The New York Times Lula, ao fim e ao cabo “Um brasileiro médio, mais ou menos crente em Deus e que se vê como o proponente de uma sociedade capitalista onde haja mais harmonia entre pobres e ricos” VEJA TAMBÉM • Trecho: Dicionário Lula Está no verbete Discurso(s): “Um dia vão ganhar dinheiro pela quantidade de discursos que eu faço todos os dias.
Eu ficaria milionário”. É improvável que Ali Kamel, diretor de jornalismo da Rede Globo, fique rico com sua mais nova empreitada, Dicionário Lula – Um Presidente Exposto por Suas Próprias Palavras (Nova Fronteira; 59,90 reais), recém-chegado às livrarias.
Porém é certo que se trata de um livro com chance de render bons frutos ao seu autor.
Afinal de contas, como nele está contido praticamente todo o pensamento político de Luiz Inácio Lula da Silva, verbalizado e sem a mediação de penas de aluguel, Dicionário Lula é ótima obra de consulta para o presente – e de referência para a posteridade que se debruçará sobre um presidente como nunca houve nesta República.
Mais completa reunião das falas do atual ocupante do Palácio do Planalto, é um livraço também no que se refere ao tamanho: 672 páginas.
Ao contrário de seus dois trabalhos anteriores, Não Somos Racistas, de 2006, e Sobre o Islã, de 2007, nos quais Kamel firmava pontos de vista tão racionais quanto intrépidos sobre os temas abordados, neste não há julgamento ideológico e moral.
Ele não opina se Lula está certo ou errado, não aponta se mente ou se atém à verdade.
Também não se dedica a coligir os erros de português, as falhas de lógica e as metáforas pedestres do presidente.
Não é um Lula de anedotário, o que emerge no livro de Kamel.
A intenção é registrar, com o máximo de objetividade e, não menos essencial, organização, o que o presidente diz pensar a respeito de uma série de assuntos, inclusive ele próprio e sua trajetória.
Desenhada a linha, Kamel desprezou os discursos protocolares de Lula, para concentrar-se naqueles improvisados no todo ou em parte.
Para além de o presidente ser o rei do improviso, aspecto incancelável de seu passado de líder sindical acostumado a mobilizar assembleias de trabalhadores, o autor explica que, a seu ver, é na fala espontânea que aparece o Lula por inteiro, “mais real”.
Oscar Cabral Ali Kamel Para montar o “léxico Lula”, ele usou um programa de computador especialmente desenvolvido para esse fim O Dicionário Lula começou a nascer em 2004, quando Kamel leu um estudo de um acadêmico americano que analisava a cobertura das eleições presidenciais de seu país – naquele ano, o republicano George W.
Bush conquistou seu segundo mandato ao derrotar o democrata John Kerry.
O estudo procurava identificar o viés ideológico da grande imprensa americana, por meio de um programa de computador que contava quantas vezes as palavras mais associadas ao ideário republicano ou democrata apareciam nas reportagens de cada veículo nos meses que antecederam o pleito.
Kamel achou o método um tanto ingênuo, porque uma palavra podia ser contabilizada como “republicana”, por exemplo, mesmo quando era reproduzida numa reportagem com o intuito de criticar a visão do partido.
Mas ele ficou fascinado com as possibilidades abertas pelo uso do computador para fazer levantamentos de conteúdo, e logo concluiu que os pronunciamentos de Lula seriam um objeto ideal: todas as falas do presidente estão reproduzidas no site da Presidência da República.
Em 2007, resolvido a enfrentar o desafio de montar um “léxico Lula”, Kamel chamou o historiador Rodrigo Elias para ajudá-lo.
Na fase inicial, que consumiu cinco meses de trabalho, foi colocado num único arquivo de computador tudo o que Lula falou entre janeiro de 2003 e março deste ano – um total de 1 554 textos, dos quais 847 discursos, 503 entrevistas e 204 programas radiofônicos.
Depois, por intermédio de um software livre – disponível gratuitamente na internet –, o TextStat, verificou-se a frequência com que certas palavras surgiam.
Como o programa era incapaz de cruzar os termos, condição necessária para conferir quando Lula os utilizava no mesmo discurso ou até na mesma frase, Kamel contratou o analista de sistemas Wilson Pacheco de Albuquerque.
Ele levou um mês para desenvolver um programa que permitia não apenas contar palavras, mas localizá-las e relacioná-las.
Ao final, o autor chegou a um vocabulário básico das 540 palavras mais usadas pelo presidente.
Para refinar ainda mais esse repertório, Kamel contou com a ajuda de uma pesquisadora, Ana Frias, para separar os momentos em que Lula enunciava frases relevantes sobre um assunto de outros instantes em que só citava o vocábulo ou um derivado em contextos desprovidos de importância.
Para completar, foi preciso expurgar termos que Lula mencionou de forma recorrente, mas que o contexto revelou serem irrelevantes – e, na direção inversa, incluir na seleção palavras que, embora menos utilizadas, fossem significativas.
Entre elas, “mensalão”, proferida apenas 35 vezes, mas que, por quarenta motivos de uma obviedade ululante, não poderia ficar de fora.
Passado o pente-fino, Kamel chegou aos 345 verbetes que compõem o Dicionário Lula.
O trabalho entrou a partir daí na fase final, que consistiu em mergulhar nas falas do presidente para extrair o que o autor chama de “unidade de sentido” – uma espécie de súmula do que o presidente diz pensar sobre determinado assunto.
Algumas entradas resumidas podem ser lidas nos quadros que ilustram esta reportagem.
Foi dito no início que Kamel, em seu dicionário, não emite opinião sobre o presidente.
Mas ele não cumpriria integralmente a tarefa a que se propôs, expressa no subtítulo do livro, se deixasse de mostrar, tanto na introdução de 87 páginas quanto na edição dos verbetes, as contradições e idas e vindas do presidente que certa feita se autodefiniu uma “metamorfose ambulante”.
Elas estão lá, para que leitores comuns e historiadores façam sua exegese.
Partidários e opositores de Lula continuarão a divergir na interpretação de um fato que, agora registrado em centenas de páginas, se torna mais evidente: o presidente adora falar sobre si próprio e de seu passado de retirante e operário.
Para os primeiros, a autorreferência é iluminação; para os segundos, limitação.
Equidistante de uns e outros, Kamel arremata que, “muito longe do estereótipo do líder da esquerda operária tradicional – geralmente ateu, arauto de um novo homem, advogado da reestruturação da família em novos moldes, proponente de um regime político-econômico em que haja supremacia dos trabalhadores em relação aos patrões –, Lula acaba exposto, por suas próprias palavras, como um brasileiro médio mais ou menos crente em Deus, defensor do modelo tradicional de família e que se vê como o proponente de uma sociedade capitalista onde haja mais harmonia entre pobres e ricos”.
E poderia ser acrescentado que, como todo brasileiro médio, ou nem tanto, ele gosta de uma cervejinha, que ninguém é de ferro, companheiro.
Com reportagem de Marcelo Marthe