Contradição milionária Por Ciara Carvalho e João Valadares, no JC desta sexta Em 1985, a Qualix, na época Enterpa, fechou o primeiro contrato de limpeza urbana no Recife.

Ultrapassou décadas, conheceu a assinatura de vários prefeitos e não largou mais os cifrões milionários do mercado do lixo.

No último dia da série de reportagens, o JC revela que a lógica não muda.

Tanto para a coleta como para o tratamento.

Nas licitações, ganha o de sempre.

Mesmo com a pecha de incompetente, é da Qualix o futuro do lixo do Recife.

Um futuro incerto.

O Consórcio Recife Energia, que vai transformar resíduos em dinheiro, nasceu carregado de questionamentos.

Nem saiu do papel e já está na mira no Tribunal de Contas do Estado.

Carrega a contradição de olhar para frente com os pés no passado.

O futuro da gestão do tratamento do lixo no Recife, que envolve cifras milionárias e concessão pública de 20 anos prorrogáveis por mais 20, carrega em seu DNA a marca do passado.

O que parece novo já nasce velho. É fácil entender.

O Consórcio Recife Energia, que correu sozinho no páreo da licitação e ganhou em 2007 o cobiçado contrato de R$ 308 milhões para tratar os resíduos sólidos da cidade, tem como principal acionista a Qualix, dona de 80% das cotas.

A empresa, enxotada da Prefeitura do Recife em julho e carimbada publicamente pelo prefeito João da Costa como incapaz de prestar o serviço de limpeza urbana por falta de estrutura, descumprimento de contrato e falha no planejamento, agora tem a responsabilidade de controlar por, no mínimo, duas décadas a destinação final de todo o lixo produzido pelos recifenses.

O entendimento é simples, mas a equação é contraditória: quem não serviu para fazer o fácil, serve para o difícil.

A incineração de lixo para geração de energia é um processo bem mais complexo do que o mero recolhimento.

Envolve tecnologia avançada, saúde financeira, alto grau de planejamento e grande risco de poluição ambiental.

Para entender o tamanho da incoerência oficial, basta passar o olho nas declarações do prefeito João da Costa.

No mês passado, durante coletiva de imprensa para anunciar como titular da coleta a Vital Engenharia Ambiental, do Grupo Queiroz Galvão, ele informou que o Recife não poderia manter, na execução de um serviço essencial, uma empresa que não dava conta do recado. “Acompanhamos todo o processo envolvendo a Qualix e multamos a empresa em R$ 1,4 milhão (por descumprimento do contrato).

Tivemos muitas discussões para que o serviço fosse regularizado, mas os problemas continuaram.” A prefeitura não enxerga nenhuma contradição. “Há um cronograma e um contrato a serem cumpridos.

Vamos ter a coragem política de cobrar da empresa assim como fizemos na questão da coleta”, diz o secretário de Assuntos Jurídicos, Ricardo Soriano.

O presidente da Empresa de Manutenção e Limpeza Urbana (Emlurb), Carlos Muniz, ressalta que o consórcio representa outra pessoa jurídica.

Do outro lado, o advogado da Qualix, Guilherme Guerra, faz uma conta simples. “O Consórcio Recife Energia vai operar por 20 anos.

Neste tempo, poderemos ter cinco gestores diferentes.

João da Costa pode passar, no máximo, oito anos.

A prefeitura não é apenas João da Costa.

Envolve um corpo técnico competente e esse acervo não pode ser desconsiderado.” A semente do Recife Energia foi plantada ainda na primeira gestão de João Paulo, mas só começou a tomar corpo no segundo mandato.

A empresa de desenvolvimento Kogenergy do Brasil, com matriz nos EUA, colocou o projeto debaixo do braço, procurou políticos e bateu na porta de várias prefeituras brasileiras, na tentativa de vender um pacote irresistível: tratamento adequado de resíduos, incineração de lixo, produção de energia e todos os problemas estariam resolvidos.

O Recife comprou a ideia.

Nessa época, o secretário de Serviços Públicos, Dilson Peixoto, e depois seu substituto, Roberto Gusmão, foram os homens escalados pelo prefeito para fazer o processo andar.

Dado o sinal verde e a garantia de que a prefeitura não recuaria, já que todo o procedimento estava respaldado politicamente, a Kogenergy se associou à argentina Qualix e à empresa pernambucana Serquip, escolhida por já trabalhar com incineração de lixo hospitalar e possuir um terreno na Guabiraba, na Zona Norte da capital, onde, inicialmente, seria implantada a unidade de beneficiamento.

Pelo contrato, o consórcio ganha dobrado.

Recebe por tonelada de lixo e ganha lá na frente quando transforma o lixo em energia.

Em troca, a administração municipal recebe 1% do faturamento bruto da empresa durante os primeiros cinco anos.

Este percentual sobre para 1,5% entre o 6º e o 10º ano, e depois para 2% até o 20º ano. “É.

Não sei como foi feita esta composição”, informou o atual secretário de Serviços Públicos, José Humberto Cavalcanti.

O ex-secretário Roberto de Gusmão deu a explicação. “Os parâmetros são absolutamente os mesmos de concessões públicas quando a empresa tem que começar o empreendimento do zero.” Nos bastidores, é forte a informação de que havia um pré-acordo entre as empresas do consórcio.

Em caso de vitória na licitação, a Qualix teria que comprar cotas da Kogenergy.

Poucos dias antes da assinatura do contrato com a Prefeitura do Recife, em janeiro de 2008, o negócio foi fechado.

A Qualix compra as ações e passa a possuir 80% do consórcio.

A Kogenergy ficou com 10% e a Serquip com os outros 10%.

Antes, para participar do processo licitatório, o Consórcio Recife Energia apresentava a seguinte composição: Qualix com 51% das cotas, a Kogenergy 44% e a Serquip 5%.

Vencida a concorrência, as três empresas, que deveriam caminhar juntas para desenvolver um projeto desse porte, fizeram justamente o caminho inverso.

Afastaram-se.

A briga não se restringiu às salas de escritório.

Chegou à Justiça.

Em 2007, houve algumas interpelações judiciais entre os próprios acionistas do consórcio justamente em razão da indefinição em relação à compra e venda das ações.

Ouvido pelo JC, o empresário Alexandre Menelau, da Serquip, negou veementemente o acerto prévio e a certeza da vitória antes da licitação. “Não teve nenhum tipo de pré-acordo entre as empresas.

Houve apenas uma briga da minoria por poder dentro do consórcio.

Nada mais do que isso.” Para Menelau, o Consórcio foi o único a apresentar proposta, porque sentiu que a prefeitura realmente iria tocar o projeto. “A Kogenersy é uma empresa de desenvolvimento.

Ela é que tem a expertise (conhecimento) do negócio.

O problema é que se fala muita coisa.” O gerente de engenharia do Recife Energia, Cálicles Mânica, também observa com naturalidade a mudança na composição dos acionistas. “É meramente um negócio.

Nada mais do que isso. É como vender um carro.

Se eu acho interessante vender meu carro, eu vendo”, resume.

A Qualix afirmou que se trata apenas de uma transação societária.

Já a Kogenersy foi procurada pela reportagem, mas não quis falar sobre o assunto.