A escolha errada Ciara Carvalho e João Valadares, no jC de hoje O perfil ousado do ex-prefeito João Paulo, reforçado pela marca da inversão de prioridades durante os oito anos de gestão, é encoberto pela sombra do conservadorismo quando o assunto é lixo.

Ele não só repetiu os erros históricos, concentrando nas mãos de uma única empresa o maior contrato do município, como insistiu num modelo que se comprovou antieconômico para os cofres da prefeitura.

Os documentos de 2002 mostram que a tinta da caneta do petista foi política e não técnica.

E, como todo erro cobra um preço, o Recife pagou a conta.

Uma conta milionária.

Mais de R$ 50 milhões deixaram de ser economizados.

Durante toda a crise do lixo, que manchou o início da gestão do prefeito João da Costa, o outro João foi poupado das críticas.

Hoje, a série sobre os bastidores da guerra do lixo, que se encerra amanhã, abre a gaveta do passado para ajudar a entender os erros do presente.

Meados de 2001.

Sede da Prefeitura do Recife (PCR).

Uma reunião da cúpula do governo com diretores e técnicos do município com o então prefeito João Paulo (PT) decide o destino de milhões e milhões de reais.

Em questão, o serviço de coleta de lixo.

O contrato mais caro e importante da gestão.

Após meses de estudos, funcionários da Empresa de Limpeza Urbana do Recife (Emlurb) e de outras secretarias sugerem o que consideravam ser o melhor caminho: a licitação para contratação das empresas deveria ser dividida em quatro lotes, o que aumentaria a competitividade e provocaria uma mudança histórica no formato dos contratos firmados até então.

Com o relatório técnico nas mãos, João Paulo preferiu fazer uma escolha política.

Em vez de quatro, determinou que seriam apenas dois lotes.

Um muito maior, com 80%, e outro muito menor, com 20%.

Os números provaram que a decisão foi um péssimo negócio para os cofres públicos.

O município continuou refém de uma única empresa, na época Enterpa, hoje Qualix, e pagou R$ 54 milhões a mais por isso.

De cara, a escolha exigiu do prefeito apagar um incêndio.

Insatisfeitos com a opção do governo, diretores e técnicos da Emlurb ameaçaram entregar os cargos.

O grupo havia passado seis meses fazendo estudos e ouvindo segmentos da sociedade em vão.

Na hora H, pesou a decisão política.

Uma nova reunião foi convocada para acalmar os ânimos.

O principal argumento usado pela gestão para convencer os técnicos a ficar foi o de que, com os dois lotes, existiria uma economia de escala.

O raciocínio era matemático: ao contratar uma única empresa, haveria um barateamento do serviço e sobraria dinheiro para executar outras obras e projetos.

A equipe ficou no governo, mas o argumento mostrou-se completamente furado.

Do ponto de vista financeiro, a concentração dos serviços nas mãos de uma única prestadora foi vantajosa apenas para um lado: a empresa vencedora.

A reportagem do Jornal do Commercio teve acesso ao relatório da comissão de licitação da concorrência 002/2002, iniciada em maio de 2002, e descobriu um fato curioso: a única empresa que disputou com a Qualix, a Vega Engenharia Ambiental, fez algo estranho para quem quer ganhar uma concorrência: apresentou um preço 23,68% maior do que o limite estabelecido no edital.

Resultado: a Qualix ganhou sem praticamente reduzir um centavo dos valores de referência estipulados pela Prefeitura do Recife.

Faturou com tabela cheia e disputando sozinha um contrato de quase R$ 180 milhões.

No outro lote, o menor, a história foi bem diferente.

Com sete empresas brigando pelo direito de recolher 20% do lixo do Recife, os preços despencaram.

A vencedora da licitação, a Construtora Andrade Guedes, terminou ganhando a concorrência com um contrato no valor de R$ 33 milhões.

A quantia foi, em média, 30% menor do que o previsto pela prefeitura.

Considerando que o período de contratação dos serviços era de cinco anos (depois prorrogado por mais 12 meses), a decisão política do prefeito João Paulo terminou onerando, no contrato inicial, os cofres da prefeitura em cerca de R$ 54 milhões, o que daria para construir 1.500 casas populares.

O cálculo é feito pelo Tribunal de Contas do Estado (TCE), com base na economia que existiria se o lote maior tivesse tido, de fato, concorrência no processo de licitação.

O TCE detalhou item por item o tamanho do prejuízo.

Enquanto a Andrade Guedes cobrou R$ 24,78 para varrer um quilômetro de rua (valor unitário do contrato), a Qualix embolsou R$ 33,26 para fazer o mesmo serviço.

Parece pouco, mas é bom lembrar que há ruas que são varridas sete vezes por dia.

Em todas as vezes, a distorção está lá.

Por causa da falta de concorrência, o lixo do morador da Iputinga terminou saindo mais barato do que o do cidadão que mora em Boa Viagem, já que as duas empresas são encarregadas por áreas diferentes da cidade.

No primeiro caso, a prefeitura pagava à Andrade Guedes R$ 24,99, por tonelada de lixo domiciliar recolhido.

Já a Qualix cobrava R$ 33,02 para recolher a mesma quantidade.

A reportagem do JC procurou o coordenador do grupo de estudo que, em 2001, formulou a proposta técnica que defendia a divisão do serviço de coleta de lixo em quatro lotes, o então diretor de Limpeza Urbana do Recife Vassil Vieira.

Ele explicou que a comissão também montou um cenário com a cidade dividida em um e cinco lotes. “Mas, na comparação das vantagens e desvantagens, a opção de quatro cotas se mostrava a mais interessante.” Além do argumento da economia de escala, a prefeitura justificou que seria “arriscado” mudar a lógica do tamanho dos lotes.

A gestão anterior, de Roberto Magalhães, já havia deixado a cidade concentrada nas mãos da Qualix, só que com percentuais diferentes: 70%, 15% e 15%.

O “risco”, segundo o governo do PT, era de que a mudança poderia provocar uma descontinuidade do serviço.

A previsão pessimista até se confirmou, no início deste ano, mas com a mesma Qualix, que ganhou os 80% do lixo do Recife, em 2002.

O JC mostrou ao técnico o quadro com os valores unitários praticados pelas duas empresas vencedoras da licitação na época (e reproduzidos nesta página).

Diante da discrepância dos números, ele reconheceu que a expectativa de economia, alegada pelo governo, na prática não se confirmou. “Dentro desse novo cenário, esses números têm que ser levados em consideração.

Se já existe um parâmetro concreto, ele não pode ser desconsiderado”, avaliou Vassil Vieira.

Os valores, no entanto, parecem não ter alterado em nada a visão da PCR.

Em novembro do ano passado, o Recife propôs o mesmo modelo antieconômico de 2002, dividindo o lixo da cidade em lotes de 80% e 20% para os próximos cinco anos.