Por Ciara Carvalho e João Valadares, no JC desta quarta A montanha de lixo que invadiu as ruas do Recife nos primeiros seis meses do prefeito João da Costa expôs um mundo de números contraditórios, contas que nunca fecham e decisões políticas equivocadas.
Problemas que não vêm de hoje.
A concentração do mais importante contrato do município nas mãos de uma única empresa é um mal histórico alimentado por várias gestões municipais.
Em 2002, o ex-prefeito João Paulo poderia ter reescrito essa história, se tivesse acatado recomendação de dividir o lixo da cidade em lotes maiores.
O modelo mais competitivo não só não foi adotado, como os valores previstos nos contratos da atual gestão foram superdimensionados.
O JC mergulhou nesse universo para mostrar os bastidores de uma disputa muitas vezes silenciosa e que na manhã hoje terá um dos seus capítulos decisivos, quando o pleno do Tribunal de Contas do Estado julga a dispensa de licitação para a contratação da Vital, a atual dona da fatia maior desse bolo.
A série de reportagens, que segue até sexta-feira, revela o resultado de um trabalho de investigação com base em documentos, editais de licitação, contratos e entrevistas com os principais personagens dessa guerra milionária.
Que diferença existe entre o meio-fio da Avenida Agamenon Magalhães, na área central do Recife, e o meio-fio da Estrada do Barbalho, na Iputinga, Zona Oeste?
Nenhuma.
A não ser por um detalhe: a pintura.
Na calculadora da Prefeitura do Recife, dependendo da área da cidade, o preço pago por esse serviço é diferente.
Bem diferente.
Uma análise comparativa dos valores praticados pelas empresas que fazem a limpeza urbana constata o absurdo.
A Construtora Andrade Guedes, responsável, há cinco anos, por 20% da coleta do lixo, cobra hoje R$ 150,65 para pintar um quilômetro de meio-fio.
Para a Vital Engenharia, contratada mês passado para o lugar da Qualix, por meio de dispensa de licitação, para cuidar da limpeza dos outros 80%, a PCR quer pagar pelo mesmo serviço nada menos que 244% a mais, exatamente R$ 518,43.
O preço, no entanto, está sendo questionado pelo Tribunal de Contas do Estado (TCE).
Considerando que pintar meio-fio não exige nenhuma grande tecnologia, só tinta, pincel e mão de obra, a discrepância salta aos olhos.
Relatório do TCE, a que o JC teve acesso, revela que o meio-fio não é exceção.
Na comparação dos dois últimos editais de licitação apresentados pelo Executivo, os preços pipocaram em quase todos os itens.
A avaliação detalhada dos serviços ajuda a entender porque, em seis meses, a prefeitura chegou com duas contas tão diferentes para o mesmo contrato de lixo, com duração de cinco anos.
O valor é praticamente o dobro.
Pula de R$ 347 milhões para R$ 618 milhões.
Sob qualquer ponto de referência, é muito dinheiro na contratação de um serviço público.
O novo valor corresponde à construção de 20 parques Dona Lindu.
Os cofres da PCR só não sentiram o baque do aumento dos preços porque o Tribunal de Contas barrou o processo.
Nas duas vezes em que os editais foram apresentados, os conselheiros decidiram pelo veto total e os documentos chegaram a ser suspensos por medida cautelar.
O primeiro edital foi publicado em 27 de novembro do ano passado, no apagar das luzes da gestão do ex-prefeito João Paulo.
Faltava pouco mais de um mês para acabar o governo e 47 dias para o fim do contrato com a Qualix, a vencedora da licitação do lote maior, ocorrida em 2002. “O recebimento das propostas estava marcado para o dia 30 de dezembro de 2008.
O principal contrato para limpeza (…) venceria em 13 de janeiro deste ano, já tendo sido aditado, em caráter excepcional por 12 meses.
Não havia tempo hábil para a conclusão do certame antes do fim do contrato vigente à época”, pontua o conselheiro Carlos Porto, no voto que resultou na suspensão do processo licitatório.
Além do curtíssimo espaço de tempo para analisar uma licitação milionária, o edital mantinha o mesmo modelo que, nas licitações de 1995 e 2002, já tinha se mostrado desvantajoso para o município.
Continuava dividindo o lixo em dois lotes desiguais: um de 80% e outro de 20%.
Insistia em concentrar nas mãos de uma única empresa um dos serviços mais importantes e onerosos da gestão.
Orientada a refazer o edital e se ajustar às recomendações do Tribunal de Contas, a prefeitura não fez uma coisa nem outra.
Manteve o modelo dos dois lotes, só que dessa vez carregou nos cifrões.
No segundo edital de coleta de lixo, encaminhado ao TCE no mês passado, as distorções dos preços independem do tamanho do lote: os aumentos são superlativos tanto na fatia maior, quanto na menor.
Em muitos itens, o aumento é mais que o dobro.
No lote de 80%, o custo da coleta domiciliar, no edital de dezembro, é de R$ 43,25 a tonelada.
No edital de julho, o mesmo serviço aparece com o preço de R$ 98,86.
Um quilômetro de capinação na Avenida Mascarenhas de Morais, Imbiribeira, por exemplo, que, em dezembro, sairia por R$ 663,49, no segundo documento, passou para R$ 1.366,68.
O TCE estranhou os novos valores. “Os preços de referência da nova edição da concorrência 007/2008 aumentaram desmedidamente e, a nosso ver, sem justificativa”, apontou o relatório que embasou a medida cautelar suspendendo o processo.
Com o segundo edital parado e sem prazo hábil para a licitação, o remédio foi recorrer a uma nova dispensa de licitação.
Dessa vez, o serviço foi parar nas mãos da Vital Engenharia, do Grupo Queiroz Galvão.
Com uma porta fechada, a PCR abriu uma janela.
Colocou na dispensa praticamente os mesmos valores fixados no segundo edital.
Com uma agravante.
Em pelo menos em dois itens, o preço é ainda mais alto.
Um deles é o serviço de coleta ensacada.
No edital de julho, o serviço custava R$ 2.576,91, a tonelada.
Agora, a PCR quer pagar à Vital R$ 3.087,44, Só para ter uma base de comparação, esse mesmo serviço começou custando no edital de dezembro R$ 1.751,57.
O tribunal questionou os preços da dispensa.
Semana passada, o município encaminhou as explicações para justificar o aumento.
E novamente a decisão está nas mãos do TCE.
Hoje o conselheiro Carlos Porto, em reunião do pleno, decidirá se os argumentos foram convincentes ou não.