Fotos Sérgio Lima / Folha Imagem e Paulo Liebert /AE SARNEY?

QUE SARNEY?

Lula defendeu publicamente o presidente do Senado até quando lhe foi conveniente para garantir a gratidão e o apoio do PMDB na sucessão presidencial O senador José Sarney lutou muito, mas não conseguiu vencer os fatos.

Ao decidir disputar a presidência do Senado, em fevereiro passado, acreditava que o cargo era uma garantia de imunidade para ele e a família – àquela altura já investigada pela Polícia Federal por suspeita de uma multiplicidade de crimes.

A visibilidade, porém, teve efeito contrário e acabou colocando o mais longevo dos políticos brasileiros no centro de uma devastadora crise no Congresso.

José Sarney, o último dos coronéis, rendeu-se diante de tantos escândalos.

Na semana passada, o senador disse ao presidente Lula que está cansado e que resolveu deixar o cargo. “Não aguento mais.

Vou negociar uma saída”, afirmou, de acordo com um interlocutor privilegiado do presidente.

A conversa aconteceu na segunda-feira, pelo telefone, quando Lula ligou para saber notícias sobre o estado de saúde de Marly Sarney, esposa do presidente do Senado, que se recupera de uma cirurgia em São Paulo.

Sarney, de acordo com o relato feito por Lula, estava abatido, disse que não conseguia dormir havia dias e se culpava pelo estado de saúde da mulher, que sofrera um acidente doméstico, fraturando o braço e o ombro.

Nos às vezes tortuosos códigos da política, desabafos como o do senador Sarney podem ser interpretados como um simples blefe, uma ameaça velada ou até chantagem de alguém em busca de proteção.

Não é o caso.

Desde o início da crise, Lula se empenhou pessoalmente na defesa de Sarney, sem nenhum pudor, a ponto de causar constrangimentos ao seu partido, quando desautorizou publicamente o líder do PT, senador Aloizio Mercadante, que havia pedido o afastamento do presidente do Congresso.

Depois da conversa telefônica com José Sarney, porém, Lula mudou completamente o tom.

Antes disposto a sacrificar um pouco da própria popularidade em troca de um punhado de votos no Congresso e de uma provável aliança com o PMDB na campanha eleitoral de 2010, o presidente vislumbrou a hora de mudar o discurso.

Sarney? “Não é um problema meu.

Não votei para eleger Sarney presidente do Senado, nem para senador.

Votei nos senadores de São Paulo.

Quem tem de decidir se ele fica presidente é o Senado”, disse Lula em entrevista, recolhendo a boia.

Jamais, portanto, poderá ser acusado de ter associado sua credibilidade à tentativa de manter no cargo um presidente do Congresso envolvido em nepotismo, desvio de dinheiro, contas no exterior…

E, daqui a alguns dias, Lula pode, quem sabe, invocar até uma conveniente crise de amnésia: Sarney?

Que Sarney?…

O presidente, o PMDB e seus aliados já começaram a discutir o futuro do Senado pós-Sarney, mas muito distante daquele que deveria ser o ponto de partida.

Lula, por exemplo, está preocupado com questões mais práticas, como a sucessão.

Trabalha para que Sarney renuncie, o que obrigaria o Senado a convocar novas eleições em cinco dias, evitando que a Casa ficasse sob o comando do vice-presidente, Marconi Perillo, do PSDB.

O PMDB, republicano como sempre, quer continuar com a presidência, mas tem dificuldades em encontrar um candidato que seja da absoluta confiança do partido e que tenha a ficha limpa – missão aparentemente impossível.

Sarney é o quarto político que presidiu o Senado nos últimos dez anos a cair em desgraça.

Antes dele, Antonio Carlos Magalhães, Jader Barbalho e Renan Calheiros passaram por processos idênticos, o que mostra que o problema principal nunca foi enfrentado. “O Senado vive uma crise institucional provocada pela falta de ética, pela complacência com o uso indevido dos recursos públicos e pela falta de transparência”, analisa o cientista político Lúcio Rennó, da Universidade de Brasília. “Não adianta apenas mudar os nomes. É necessária uma mudança radical nas práticas.” A questão é que isso não interessa a quem deveria promover as mudanças – e os escândalos envolvendo o senador José Sarney explicam por quê.

A família Sarney sempre teve um apreço especial pelo setor energético, feudo do clã há pelo menos duas décadas.

Além de dividendos políticos, o controle do setor proporciona outras vantagens.

A Fundação José Sarney, criada pelo senador no Maranhão, é acusada de desviar dinheiro de um convênio com a Petrobras.

O Instituto Mirante, ONG presidida pelo filho-problema Fernando Sarney, recebeu recursos da Eletrobrás para financiar projetos culturais no estado – parte desviada para contas de empresas da família.

Fernando Sarney é o mesmo empresário que fez bons negócios na década de 80 vendendo postes de luz à estatal de energia do Maranhão ao mesmo tempo em que presidia a empresa por indicação do pai.

A incursão mais recente e enrolada dos Sarney no campo energético ocorreu em Santo Amaro, no interior do estado.

Lá, a Petrobras descobriu um manancial de gás natural.

Há três anos, com a valorização do gás no mercado internacional, a Agência Nacional do Petróleo decidiu licitar a área para exploração.

Antes que isso acontecesse, porém, o senador José Sarney tomou posse do local.

Tomou posse, explique-se, porque há indícios de que houve grilagem de terras e estelionato – tudo coincidentemente conjugado com decisões de órgãos federais do setor energético comandados por pessoas ligadas a Sarney.

Fotos Ana Araújo e Celso Junior/AE O IMPÉRIO SOB INVESTIGAÇÃO Vista aérea do Convento das Mercês (à dir.), sede do Memorial José Sarney, em São Luís, e o poço de gás – a válvula em terras do grupo na região dos Lençóis Maranhenses (à esq.).

A situação se agravou com as revelações sobre desvio de dinheiro público, tráfico de influência e grilagem de terras Oficialmente, as áreas onde ficam os reservatórios de gás pertencem à empresa Adpart, que tem o presidente do Senado como cotista.

O problema é que existem enormes discrepâncias entre o que dizem os papéis da empresa de Sarney e o que indicam as certidões dos imóveis.

O que se media em poucos metros nas certidões dos cartórios do Maranhão passou a se contar em centenas de hectares nos documentos de Brasília.

O milagre da multiplicação é que permitiu ao senador se tornar proprietário da área minada de gás.

Numa certidão, Sarney diz ter comprado 200 hectares do lavrador Clodoaldo Garcia Lira.

Entrevistado por VEJA, porém, o lavrador disse que vendera somente um “pedacinho” pequeno de terra, onde cultivava caju e mandioca.

Ele diz ter vendido o terreno por 25.000 reais, pagos em dinheiro vivo por Ronald Sarney, irmão do presidente do Senado e procurador dele nos negócios de Santo Amaro.

Diz o lavrador: “Meu terreninho ficava a uns 10 metros do poço”.

Depois da venda, o poço apareceu misteriosamente dentro do terreno. “Foi o pessoal do Sarney que cercou”, diz o lavrador.

O principal poço de gás localizado nas terras também está cercado por arames e madeira.

Entrevistado, o capataz de Sarney, José Ribamar Rodrigues de Oliveira, diz ter feito o serviço: “O doutor Ronald (irmão de Sarney) que me pediu.

O presidente Sarney já veio aqui três vezes visitar o poço.

Isso aqui tudo é do Sarney”.

Será?

Em fevereiro de 2006, o então ministro de Minas e Energia, Silas Rondeau, indicado por Sarney para o cargo, autorizou a Agência Nacional do Petróleo a licitar a área.

A Panergy, empresa que ganhou a licitação, pagou 1,1 milhão de reais ao governo pelo direito de investir na região.

A empresa só aguarda a anuência ambiental do Instituto Chico Mendes para começar a exploração.

Diz Normando Paes, dono da Panergy: “Trata-se de um campo de gás e não esperamos problemas para explorar.

Fui informado pelo governo de que a área é pública e pertence ao estado do Maranhão”.

Telma Thomé, presidente da estatal de gás do Maranhão durante o processo de licitação da ANP, confirma que a área é pública. “As terras são do estado do Maranhão.

Nós sempre trabalhamos os projetos de exploração de gás com essa perspectiva”, diz ela.

O cartório da cidade não ajuda a esclarecer o mistério.

Diz a tabeliã Elke Viviane: “O pessoal do Sarney trouxe a certidão de compra das terras.

Não posso falar mais nada”.

Nem precisa.

O desfecho da crise envolvendo Sarney representa um golpe contra as tradicionais oligarquias políticas brasileiras, mas não o definitivo – aliás, longe disso.

Antonio Carlos Magalhães, Renan Calheiros, Jader Barbalho e Sarney produziram herdeiros, biológicos ou não, que mantêm vivas as seculares práticas coronelistas.

O tamanho e a importância que tem o PMDB no cenário nacional é o maior exemplo disso.

Como um câncer em processo de metástase, o partido é o abrigo seguro desse jeito peculiar de fazer política, desses grupos que continuam espalhados pela máquina do estado empenhados exclusivamente em girar a roda do fisiologismo e da corrupção.

Se a renúncia de Sarney se confirmar, alguém é capaz de imaginar que os indicados pelo senador no setor elétrico serão demitidos?

Não, não serão.

Eles continuarão lá, fazendo tudo o que sempre fizeram, igualzinho ao que manda a cartilha atrasada pela qual reza a maioria dos políticos brasileiros, independentemente da agremiação a que pertencem.

Afinal, essa é, e ainda vai continuar sendo por muito tempo, a mais eficiente e segura forma de fazer política: trocando votos por cargos, permutando verbas por apoio, empregando parentes e amigos – tudo com o nosso dinheiro.

José Cruz /ABR TUDO POR UM VOTO Mercadante, líder do PT no Senado, fez nota pela saída de Sarney e foi desautorizado por Lula