Há alguns anos, seria quase impossível juntar Lula a Collor e Sarney em uma mesma frase.
Nada tinham em comum.
Agora, por um punhado de votos, estão no mesmo projeto político.
Adivinha quem perdeu?
Hélvio Romero/AE O PASSADO É PARA SER ESQUECIDO Lula abraça Collor, seu rival na eleição de 1989, durante evento em Alagoas: “Quero fazer justiça ao senador Collor, que tem dado sustentação ao trabalho do governo no Senado” VEJA TAMBÉM • Em VEJA de 24/12/1989: Os bastidores da campanha presidencial de 1989 • Em VEJA de 27/5/1992: Os ataques de Pedro Collor • Em VEJA de 20/5/1992: Uma limpeza geral • Especial: 15 anos do impeachment Lula está com Fernando Collor e não abre.
Para seu passado e para as pessoas que o seguiram com admiração na gloriosa trajetória da liderança sindical até o posto mais alto da hierarquia política do país, a Presidência da República, ele manda “aquele abraço”.
Os ingleses têm um ditado memorável e adequado a momentos parecidos com esse: “Politics make strange bed-fellows”, que se traduz livremente por algo como “a política forma os mais estranhos casais”.
Mas que casal formam Lula e Collor?
Um estranho casal.
Lembra um pouco a distinção que o traidor do livro O Fator Humano, do grande romancista inglês Graham Greene, fazia entre o comunismo e o capitalismo.
Ele justificava seu trabalho de espionagem em favor da União Soviética com a explicação de que “os pecados do comunismo pertencem ao passado, enquanto os do capitalismo ao presente”.
Levado ao impeachment em 1992 por corrupção, Collor é o cônjuge cujos pecados pertencem ao passado.
Os de Lula são do presente: a vista grossa e a legitimação (dada por sua enorme popularidade) da fisiologia, da corrupção e do coronelismo na política brasileira.
Mais grave talvez do que absolver condutas impróprias ao abraçar certos tipos em público é o objetivo pelo qual Lula se presta a esse papel.
Ele abomina derrotas políticas.
Toda vez que foi derrotado no Congresso, independentemente da justeza da decisão dos parlamentares, sentiu-se pessoalmente ofendido.
A companhia de gente como Collor, José Sarney e Renan Calheiros lhe causa menos desconforto do que derrotas no Congresso.
Para evitá-las, ele faz qualquer coisa, até mesmo correndo o risco de passar à história como um democrata com credenciais menos impecáveis do que as que realmente possui.
Tamanho é o vigor da Blitzkrieg do Executivo sobre o Congresso que, para muitos analistas, Lula já está desrespeitando o preceito constitucional da independência dos poderes.
Interferências como a ordem dada à bancada do PT para mudar de posição e passar a apoiar José Sarney afrontam a separação dos poderes prevista na Constituição. “Lula comete uma infração ética, política e moral ao interferir em outro poder”, afirma o cientista político Octaciano Nogueira. “Essa interferência é um risco à democracia, pois leva ao descrédito o Legislativo, poder soberano, no qual a participação popular é mais efetiva.” Com o enfraquecimento do Congresso, o controle do Executivo fica mais frouxo, propiciando até a possibilidade de medidas autoritárias e de exceção.
Roberto Stuckert Filho/Ag.
O Globo AMIGO É PARA ESSAS COISAS Sarney e o jatinho Hawker 800XP, que lhe é emprestado pelo amigo Fecury, ex-assessor feito milionário Todas as constituições brasileiras desde 1824 seguem o preceito da separação dos poderes, o que, é óbvio, não inibiu os governantes de bulir com o Parlamento.
Na opinião de Octaciano, todos os governos desde a redemocratização interferiram indevidamente no Congresso.
Antes era mais às claras.
Getúlio Vargas e os militares simplesmente fecharam o Congresso.
O vício recente mais comum é a cooptação de partidos por meio de cargos e verbas para a formação de maiorias.
Mas nenhum chegou à obsessão do lulismo, que instituiu o mensalão para controlar a Câmara e, agora, tenta subordinar o Congresso ao Executivo.
Formalmente, diga-se, a separação e a independência entre os poderes não são precondições para o funcionamento de uma democracia.
Para ficarmos com um único exemplo, a Inglaterra tem um regime democrático modelar, mas no seu sistema de governo parlamentarista os poderes se embaralham.
O chefe do Executivo inglês, o primeiro-ministro, é sempre um membro da Câmara dos Comuns, a câmara baixa do Parlamento – e ele é elevado ao poder ou é apeado dele não pela vontade popular expressa pelo voto direto, mas por decisão da maioria de seu partido.
O Poder Judiciário na Inglaterra, por sua vez, é função dos lordes da câmara alta do Parlamento.
Se não é, como a Inglaterra demonstra, o voto direto no chefe do Executivo nem a separação ou a independência dos poderes, o que mesmo define a democracia?
A garantia de que nenhum grupo político se perpetue no poder.
Sob a pressão do Executivo, o Senado, como profetizou o senador Jarbas Vasconcelos em março passado, vai assumindo a forma de seu atual presidente.
Na semana passada, um dos filhos de Sarney, Fernando, foi indiciado pela Polícia Federal por lavagem de dinheiro e falsificação de documentos para favorecer suas empresas em contratos com estatais.
Começou a chamar atenção também um dos mimos mais vistosos cultivados pela família Sarney, o jatinho Hawker 800XP, matrícula PP-ANA, com valor de mercado estimado em 7 milhões de dólares.
Formalmente, ele pertence à faculdade de Mauro Fecury, ex-funcionário do Palácio do Planalto quando Sarney era presidente e hoje senador (suplente de Roseana Sarney).
A política forma mesmo estranhas parcerias.