Por Assuero Gomes Cortada de rios, vejo Recife com suas artérias e veias abertas, sangrando.

Já não são os Flamboyants nem as tardes que tingem de vermelho nossos olhos, apenas o sangue de pessoas, derramado nos bueiros entupidos.

A cidade sangra o sangue da violência, da juventude estuprada nos seus anseios e sonhos.

Pesadelos emanados do crack e da maconha, vidas sem valor nenhum, nem as deles nem as dos nossos filhos.

Nos out-doors e nos out-bus mulheres louras seminuas cobram o consumo de pares de tênis, na televisão os jogadores de futebol mostram seus dentes e seus carros de luxo, nos jornais as páginas pingam sangue.

Os jovens da periferia olham para trás e não vêem família, olham para frente e nada vêem, olham o agora e sentem o gosto metálico de uma bala entre os dentes.

Crêem no deus imediato do crédito adquirido com o revolver, sonham com o carro do boy da faculdade particular.

Pais e mães aflitos oram todas as noites para que os filhos e as filhas retornem.

Insones vasculham as janelas do apartamento ou o som das ruas noturnas na ansiedade do retorno.

A cidade trama, a cidade mata.

O olhar cartesiano dos gestores mecanicamente esconde os corpos e pensa em aumentar o efetivo policial.

Alardeiam um por cento a menos de mortes que há dez anos, três por cento de menos sangue que no carnaval anterior, quatro balas a menos que no último natal.

A cidade sangra aflita.

A droga permeia no seu rastro maldito.

Os ricos enviam seus filhos para o Canadá ou para a Europa, os remediados sonham com isso, e veem que a única solução plausível é a porta derradeira do aeroporto internacional Gilberto Freire/Guararapes.

O abismo que há entre o menor salário e o maior ganho entre os brasileiros é bem mais profundo do que possa imaginar nossa voraz e insaciável máquina de arrecadação de impostos.

O abismo nos sugará a todos, com ou sem CPF, aliás, já está sugando a cada dia, a cada noite; é um abismo terrível, nos quais vamos depositando nossos jovens, nossa esperança, nossa civilidade.

A cidade sangra pelos olhos, suas lágrimas vermelhas, sangra pelos ouvidos com os gritos lancinantes de mães solitárias, sangra pelos poros de cada janela aberta nas noites dos apartamentos.

Assuero Gomes (assuerogomes@terra.com.br) é médico e escritor