Por Miguel Sales, especial para o Blog de Jamildo Ontem, entre tantos amigos e conhecidos, fui ao funeral do professor Pinto Ferreira.
O local em que ele se realizara não poderia ser mais adequado.
Lá, ele fora aluno, professor, diretor, fundador do seu curso de pós-graduação, entre outras funções.
O seu curso de pós-graduação, como sabem os doutores da lei, é de fama internacional, sobretudo em Portugal.
Evidentemente, como se percebe, refiro-me à sempre velha e nova Faculdade de Direito do Recife, berço sempre sonhado pelas gerações do passado e do presente, que almejam ingressar no mundo do saber jurídico.
A própria história da casa de tantos pernambucanos imortais não fora melhor contado do que pela genial idade de Pinto, em dois memoráveis volumes, numa retórica eloquente e poética.
Assim, a Faculdade de Direito do Recife, foi também, em todos os aspectos, a casa de Pinto Fereira, da qual sua inesquecível filha é também professora.
Neste ambiente, enquanto olhava o corpo intacto de Pinto, preso num caixão, de passagem certa para uma outra dimensão, meu olhar se inclina para a sala que, como aluno, pela primeira vez pus os pés naquela faculdade nos ídos dos anos 70.
De repente, como uma cortina que se abre, tudo parece um cenário de ontem.
Lá estavam os sorrisos dos calouros, os gestos da minha primeira e tímida fala com o professor.
Sim, era por este nome que Pinto, mais gostava de ser chamado, sem importar as outras atividades que exercera.
Era a cena do pasado se contrapondo à do presente ou, por outro ângulo, como fruto do imaginário, a emenda da mesma realidade.
Todos que passam por essa vida, deixam uma marc a, sobretudo para os que lhe são mais íntimos.
Para mim, a marca maior deixada por Pinto, não fora o elenco de suas obras, de seus cargos, de seus títulos, mas a da sua simplicidade: uma simplicidade enrequecida de sabedoria e afabilidade.
Pinto dialogava com a estudantada como se fora um deles.
No início, me veio à mente, talvez por estar cercado de tanta toga e pompa, ser ele era da tão famosa faculdade apenas um mero servidor ou, quem sabe, um também um de seus alunos.
E na época, recordo, alunos mais velhos havia.
Um deles, que o tempo não me faz esquecer, era todo careca e igualmente cheio de meiguice, que nós o apelidamos de Kojak.
E dodos deles queriam ser amigos, como todos se debruçavam sobre as doces e filosóficas brincadeiras de Pinto.
Há lições práticas dele que nunca esqueço, a maioria nada tendo a ver com o Direito.
Era um conselheiro, mas só falava depois de muito ouvir.
Mas, voltando às lembranças, a outras cenas, por que, às vezes, ainda que por um instante, todo o passado parece se misturar com o presente?
De novo, eu me vejo, com o meu jeito então de menino - mas me sentindo um herói por pisar num pátio onde discursura Castro Alves - num novo mundo cheio de sonhos, brotando em cada riso que passa; do outro, do realmente agora, os mesmos amigos, porém mudados com a inexorabilidade do tempo, acrescidos a tantos outros, estão todos, reunidos no mesmo sentimento e lágrimas, dando adeus ao professor.
Do professor que eu recordo, como numa virada de página, quando às vésperas de minha formatura, bateu no meu ombro e me chamou para lecionar na Faculdade de Direito de Caruaru, a qual ele junto à Tabosa de Almeida, edificou em solo agreste, quando, tão diferente de hoje, só havia cursos jurídicos, em Recife, seja na Federal ou na Católica, sendo ele delas todas, profess or, inclusive na de Olinda, logo que começara a sua primeira turma.
Em Caruaru, que vinha gente de todo lugar do agreste e do sertão nordestino, pude testemunhar melhor a simplicidade do professor.
Talvez um tributo de sua afeição a pessoas de pairagens distantes, que deixando os seus afazeres, rumavam para as trilhas do saber.
Lembro, como se fosse hoje, que o secretário tinha faltado e o professor estava no atendimento.
E atendia a todos com mais leveza e atenção do que o taciturno secretário.
Um dia, todo prepotente, um senhor furou a fila, e falando alto, quis logo ser atendido, e virando-se para o professor disse: “O senhor está falando com um vogal.” Pinto, calmamente, mas, de pronto, com uma resposta sábia, lhe respondeu: “É…, mas eu prefiro as consoantes.” Vogal, para os noviços, na antiga Justiça do Trabalho, era um juiz classista.
Por falar em consoante, Pinto não só foi grande no mundo jurídico, embora aí resida o maior número de suas obras, mais que uma centena, muitas delas atravessando fronteiras do além-mar e traduzidos em diversos idiomas, as quais ele relia, uma vez que ainda jovem, com maestria, já dominava as línguas européias e latinas.
Pinto também navegou pelo mundo das academias, jurídicas ou não, da filosofia, da sociologia, da ciência política e da literatura, numa linguagem simples, profunda, didática, citatória, numa liguagem em que harmoniza a prosa e a poesia, mesmo quando a matéria era jurídica.
A elegância de seus escritos e a simplicidade de seu proceder era a sua marca.
Pinto ensinava, lia, escrevia e se dedicava à política ao mesmo tempo, lembrando a genealidade, para citar pratas da casa, um Josué de Castro, um Gilberto Freire.
E ainda fundava instituicões de ensino como a Faculdade de Direito de Per enambuco e Sociedade Pernamucana de Cultura e Ensino, edificadas no entorno da casa onde nascera, que carinhosamente são administradas por sua esposa e filhos.
Acho que por merecida indicação do Nosso Fernando Lyra, então ministro da Justiça, Pinto Ferreira foi único pernambucano escolhido a compor os 50 notáveis do mundo jurídico e literário para redigir o primeiro esboço da nossa atual Constituição.
A par desses afazeres, ainda encontrava tempo para se dedicar a espinhosa atividade política do dia-a-dia.
Entre a metade da decáda de 60 e 70 fora presidente do velho MDB, criando, com muita garra, junto a Jarbas Vasconcelos, como secretário, diretórios em muitos municípios pernambuco.
Eu próprio, por empenho delo, por um tempo, fui presidente do Diretório do Cabo.
Era um MDB que lutava contra a ditadura militar que se instaurou em nosso país.
Não, favor não confundir com o PMDB de hoje, seu sucedâneo, tão cheio de corrupção, como denunciou apropriadamente o nobre senador.
Jarbas também é testemunho do grandeza ética de Pinto Ferreira.
Pois, em 1978, se não me engano, quando ninguém quis ser candidato a senador por pernambuco, Pinto aceitou o sacrifício, e colocou a campanha na rua, visanto de diretório em diretório.
Pois bem, quando, lá na frente, se aventou a possibilidade de vitória, Marcos Freire que antes não aceitou abdicar da candidatura para a renovação tida como certa de seu mandato de deputado federal, topou a parada para o Senado, e Pinto na sua simpliccidade continuou na cátedra fazendo dobra da carga horária.
O País, na época, tinha 21 estados, e fez 16 senadores, sendo Marcos um deles. É a partir daí que temos os primeiros ensaios de abertura política em nosso país.
Pinto era realmente um gênio, embora, como dito, mais conhecido como um homem da letras jurídicas, fiquei surpreso quando li o seu Interpreta ção da Literatura Brasileira, escrito em 1957, premiado pela Academia Brasileira de Letras.
E no meu modesto conhecimento, o melhor livro que se escreveu sobre o tema. É verdade, que de outra feita, Pinto foi senador por Pernambuco por cerca de quase um ano, mas tal fato se dera em razão deste ter sido suplente de seu amigo José Ermírio de Moraes, quando este foi ser embaixador na Alemanha.
Com o Golpe de 64, tudo fora desfeito.
Pinto voltou à banca universitária e José Ermírio, ao Senado, ingresando, alo lado do professor, para o MDB, quandos os partidos foram extintos, e a Arena era a toda poderosa.
Para os que acredita em vida após a morte ou em outra dimensão semelhante, Pinto agora está em lugar de honra, ao lado de humanistas, de pensadores, de escritores, acadêmicos, de seus alunos que cedo partiram, de políticos que honraram o passado e plantaram as sementes para o Brasil do amamhã.
Que João Cabral de Melo Neto, com sua prosa poética e revoluciária, lhe dê boa vinda e coloque ao lado dos pernambucanos que o cumpim não rói, como diz o nosso atual e jovem governador.
Para os que têm entendimento diverso, acha que a vida se encerra mesmo aqui na terra, mesmo assim ele permanecerá imortal entre nós, e a sua vida está em nossas vidas em cada página de um livro seu que for aberto, em cada gesto nobre seu que seja herdado, em cada preservação da instituição de ensino que ele se dedicou ou construiu, no coração e mentes de seus amigos, e finalizo dizendo que são os mortos que governam os vivos.
Essa frase ele me disse e eu nunca a esqueci, e dela também me lembro como se fosse ontem.
Promotor Miguel Sales