Discurso sem adjetivos Por Gustavo Krause Na tradição judaico-cristã, a palavra constrói o universo natural e revela verdades que iluminam, convertem e guiam os seguidores dos preceitos religiosos.
Somos almas falantes em permanente comunicação.
Na tradição política, a palavra carrega a força do bem e do mal; pode servir ao bem quando propõe a mensagem fundadora do compromisso e da esperança; pode se transformar no instrumento do mal quando dissimula o propósito demagógico.
Em ambos os casos, o poder da palavra é um espécie de fagulha que incendeia e mobiliza forças sociais em estado de letargia e desespero.
Não faltam exemplos históricos em que os discursos políticos empurraram a humanidade nos dois caminhos.
Fiquemos com alguns exemplos do caminho do bem, pelo menos três, todos curtos na forma, consistentes no conteúdo, construídos por palavras exatas e convicções sólidas.
Jamais perderão o sentido da permanência.
Em novembro de 1863, Abraham Lincoln, por ocasião da inauguração do cemitério militar de Gettysburg, fez um discurso de menos de três minutos com cerca de 270 palavras que ficou definitivamente gravado na memória histórica (o fato curioso é que foi precedido por um discurso que durou duas horas pronunciado por Edward Everett, famoso apenas pelo incômodo que causou e pelo esquecimento da posteridade).
Churchill, ao formar o gabinete inglês, em 1940, que derrotaria o nazismo, fez a mais concisa e corajosa promessa a um povo já massacrado pelos horrores da guerra: “Só tenho para oferecer sangue, sofrimento, lágrimas e suor”.
Ganhou a guerra com a convocação imortalizada pelo exemplo de franqueza e coragem cívica.
O “sonho” de Martin Luther King sobreviveu à sanha dos seus algozes e o verbo fez-se homem, fecundado pelos sonhos, pelos votos e pelas lágrimas emocionadas da multidão americana que saudou o 44º presidente, o negro, Barack Obama.
Independente das simpatias ou antipatias, das misérias e grandezas da civilização americana, a posse do novo presidente é um fato histórico; olhos e ouvidos do mundo inteiro estavam (e estão) voltados para um admirável gesto de rotina em mais de dois séculos de prática democrática: alternam-se governos dentro do marco institucional gestado pelos pais fundadores da federação americana.
Li e reli várias vezes o discurso de posse.
Um discurso sem adjetivos; sem adornos retóricos; mensagem em que Obama (e seu assessor e co-autor, o franco-canadense, Jon Favreau de apenas 27 anos) não deixou escapar e se colocou diante dos temas relevantes da atualidade.
A fala do Presidente americano recorreu à ancestralidade buscando forças para seguir em frente “não somente pela habilidade dos que estavam no alto escalão, mas porque nós, o povo, permanecemos confiantes nos ideais dos nossos ancestrais e fieis aos nossos documentos fundadores”.
Nesta mesma linha não esqueceu a herança dos desbravadores, a sofrida saga do que chamou de “fazedores de coisas”.
Tem a percepção lúcida do significado da nova era e tem consciência de que encarna um novo tempo em que “Nossos desafios podem ser novos.
Os instrumentos com os quais nós os enfrentamos podem ser novos.
Mas aqueles valores dos quais nosso sucesso depende – trabalho duro e honestidade, coragem e justiça, tolerância e curiosidade, lealdade e patriotismo essas coisas são antigas.
Essas coisas são verdadeiras.
Elas têm sido a força quieta do progresso ao longo de nossa história”.
Em paralelo, sem perder o rumo dos valores, olhou para a conjuntura com senso pragmático, ao propor um estado funcional e um mercado sob vigilância.
Faz a esperança repousar na confiança e, sobretudo, na autoconfiança de um povo que se reinventou várias vezes.
Compreendeu a dimensão do poder do império, mas não persegue a hegemonia; busca o diálogo e as alianças em clima de concórdia no mundo multipolar (“o nosso poder cresce com seu uso prudente”).
Não vacila e muito menos esconde a disposição de enfrentar os inimigos renitentes ao rejeitar a “falsa escolha entre nossa segurança e nossos ideais”.
A desigualdade social e a questão ambiental não passaram despercebidas: “Às pessoas das nações pobres, nós queremos trabalhar a seu lado para fazer suas fazendas florescerem e deixar os cursos de água limpa fluirem” (…) Nós usaremos o sol, os ventos e o solos para abastecer nossos carros e movimentar nossas fábricas.
A afirmação mais carregada de simbolismo e emoção está na crença reiterada da “nossa liberdade e nosso credo” quando diz: “Um homem cujo pai, menos de 60 anos atrás, poderia não ser servido num restaurante local, agora pode estar diante de vocês para fazer um julgamento sagrado”.
Obama falou e disse.
Que as palavras fertilizem a paz e a prosperidade duradoura.