Por Gustavo Krause Rio de Janeiro, quinta-feira (27 de novembro), fim de tarde, rumo ao galeão a bordo de um confortável táxi que serve ao hotel onde me hospedara.
Conversa vai, conversa vem, como é de praxe, fico sabendo que Paulo Quaresma, o motorista, nasceu em Portugal, filho de português e mãe caruaruense, isto mesmo, a mãe era natural da princesa do agreste, graças ao avô que ali se estabelecera nos anos vinte como próspero comerciante.
Bem apessoado e bem informado, o Sr.
Quaresma, aparentando estar na casa dos quarenta, fala e ouve educadamente, deixando fluir o bom papo.
Conversa vai, conversa vem, eu disse que estava lendo “A viajem do Elefante”, do conterrâneo José Saramago, recurso habitual que uso para atenuar a chatice das viagens aéreas, cruelmente impedido, quando algum intruso tira o prazer da leitura sem dar a contrapartida da boa companhia.
A coincidência: “Aí onde estás sentado - com leve sotaque e o indisfarçável tratamento pronominal lusitano - sentou-se o Doutor Saramago junto com Dona Pilar nos dois dias em que estiveram cá no Rio para o lançamento internacional do livro”.
Incontinenti, procurei informações sobre a saúde, a aparência do escritor que esteve à beira da morte, acometido que foi, entre o fim de 2007 e o começo de 2008, de misteriosa doença. “Está fraquinho”, diagnosticou em síntese carinhosa, mas rejeitou ajuda sutil e cavalheira para sair do carro por meio de gesto não menos sutil e igualmente cavalheiro de quem ainda pode erguer-se e caminhar com as próprias pernas.
A doença o deixou com cinqüenta e um quilos num corpo onde antes estavam distribuídos sessenta e sete parcialmente recuperados.
Intacta, a imaginação do autor que deixara o livro na página quarenta, concluiu sua obra, tão logo lhe permitiu a força física, sem o menor sinal do drama existencial de quem se vê, ainda que intimorato, diante da parca.
De fato, a casca está fina.
Fraquinha.
Rosto encovado, Saramago não recobrou sequer o tom firme da voz, mas a essência não perdeu um grama de vigor e lucidez.
A verdade é que o sólido espírito do autor venceu a batalha para o corpo debilitado, pregando uma peça na crença inabalável da matéria, salva, segundo ele, “pelos médicos e por minha mulher”.
Concluiu a obra e segue vivo, para nós, com todo respeito ao ateu Saramago, graças a Deus.
Foi assim que o vi em entrevista dada à Globo News, nas páginas da viagem do elefante Salomão (xará do Rei de Judá, depois, Solimão, homônimo do sultão otomano) e na sabatina realizada pela Folha de São Paulo.
Na entrevista, mandou recado, contrariando os críticos: seu novo livro não inaugura nova fase de sua obra, mais leve e bem humorada, pois, segundo o próprio Saramago, no próximo, ele continuará chato.
De fato, o livro, tem como enredo um fato histórico: a viagem do elefante indiano de Lisboa a Viena que D.
João III, rei de Portugal, esposo de Catarina de Áustria, deu de presente ao Arquiduque Maximiliano, regalo, segundo o rei, à altura do nobre austríaco.
No entanto, tudo mais é ficção onde humor e ironia (embora ele distinga) se confundem no que nomeia de conto e não de romance; leva o leitor, como faz habitualmente, a viajar, desta vez, ao lado do elefante, do cornaca, do comandante da cavalaria, da junta dos bois, dos ajudantes da intendência, na pregação humanista que penetra na couraça do paquiderme para nele desvendar o bem do estado, a entidade religiosa, o animal dócil e manipulável, tal qual a humanidade que metaforicamente representa, submetida à estúpida insensatez dos detentores do poder.
Das primeiras cenas, na reclusão da alcova, quando o Rei e a Rainha decidiram presentear o elefante até o desfecho final da longa viagem e a comunicação às realezas lusitanas da morte do paquiderme, a autor diverte o leitor com o mais fino humor, com requintada e implacável ironia, divertindo-se igualmente com as misérias da natureza humana e fulminantes estocadas à beatitude religiosa.
Na sabatina da Folha, celebrando os 50 anos da Ilustrada, o Saramago de sempre se mostra em admirável coerência: “A história da humanidade é um desastre contínuo.
Nunca houve nada que se parecesse com um momento de paz (…) Esta raiva que no fundo há em mim, espécie de raiva às vezes incontida, é porque nós não merecemos a vida (…) Não se percebeu ainda que o instinto serve melhor aos animais do que a razão serve ao homem”.
Para o ateu Saramago, Deus é uma invenção humana a partir do medo de morrer; o pecado, um instrumento de controle; a Bíblia “não é um livro que se possa deixar nas mãos de um inocente”.
Finalmente, apresenta uma definição originalíssima para sua opção político-ideológica: “Sou aquilo que se pode chamar de comunista hormonal (…) Assim como tenho um hormônio que me faz crescer a barba, há outro que me obriga a ser comunista”.
Se um elefante amola muita gente, se um elefante viajando diverte muita gente, a força do pensador Saramago pode encucar muita gente.
PS: Gustavo Krause é ex-ministro da Fazenda e escreve no Blog de Jamildo sempre que dá na veneta