Por Edilson Silva As últimas semanas reservaram ao mundo dois fenômenos cujas dimensões e conseqüências nos terrenos político e ideológico são ainda incalculáveis.
O primeiro é o que podemos chamar de “queda do muro” do neoliberalismo, com uma brutal crise financeira internacional, do porte ou maior que a de 1929.
O segundo é a vitória de Barack Obama na corrida presidencial norte-americana.
A crise financeira impõe, como mínimo, mudanças de paradigma para o sistema do capital.
E isto quem diz é Nicolas Sarkozy, primeiro ministro Francês, segundo o qual se trata de “refundar” o próprio capitalismo.
E é neste momento, em que a refundação do capitalismo se coloca na pauta, que Barack Obama, embalado num avassalador sentimento de mudança, assume o leme da maior economia do planeta, do país que simboliza e é, de fato, a sede do império capitalista contemporâneo.
Ambos os fenômenos, portanto, se combinam, valorizam-se mutuamente, relacionam-se dialeticamente e têm seus destinos colados um ao outro.
Para os que acompanham o desenrolar da economia mundial pelas lentes da lógica do capitalismo desvendada por Marx, este colapso financeiro era previsível, uma questão de tempo.
O modelo neoliberal, que passou a ganhar hegemonia nos anos 1980 com a crise do modelo hegemônico anterior, Keynesiano, está em crise desde a segunda metade dos anos 1990, e de lá pra cá vem sobrevivendo de ataques inaceitáveis às condições de vida da população mundial e ao meio ambiente; rebaixando os patamares civilizatórios já adquiridos pela humanidade; produzindo guerras; absorvendo de forma anárquica e insana as economias do antigo bloco soviético, com muito destaque para a China e sua inserção no mercado mundial; e ganhando fôlego principalmente através dos truques da reprodução de capital fictício na jogatina das bolsas de valores.
Há limites para tudo isto, e eles chegaram.
A novidade real para todos nisto tudo é mesmo Obama.
E se por um lado a “queda do muro” do neoliberalismo era previsível e causou uma desmoralização generalizada nos fundamentalistas do deus-mercado em Wall Street e no resto do mundo, por outro lado a vitória de Obama tem se colocado como um fenômeno desafiador para a esquerda mundial, em função da força e da velocidade com que o fenômeno se impôs no centro do capitalismo, algo impressionante e imprevisível.
E não se trata apenas dos eleitores norte-americanos terem dado a vitória a um negro para a presidência de seu país, pois a sociedade mundial de conjunto não se impressionaria tanto apenas com este fato.
Há negros e “negros”.
Se fosse Condoleezza Rice a assumir a presidência, por exemplo, seria a primeira mulher e também a primeira afro-descendente no cargo, no entanto a América Latina estaria agora aumentando as barricadas para se defender da 4ª Frota da marinha norte-americana, e o resto do mundo preparando-se para o pior dos mundos.
Trata-se de Barack Hussein Obama, um sujeito singular com uma história singular, num momento histórico singular, cuja cor da pele e a etnia são fatores que dialeticamente fazem muita diferença no resultado político obtido, e não necessariamente eleitoral, pois se Obama não ganhasse a eleição de MCcain, mesmo assim já estaria convertido em liderança política internacional, praticamente o porta-voz de um setor importante da opinião pública mundial, o presidenciável norte-americano que encarnou o discurso do “outro mundo possível” no coração do império.
A Obamamania é mais uma prova de que a realidade pós-muro de Berlim e pós-neoliberal se apresenta mais complexa do que os velhos esquemas do tempo da guerra fria suportam enquadrar.
A onda Obama varreu a Europa com seu “yes, we can”.
Nenhum político alemão consegue reunir 200 mil pessoas para um comício, mas Obama conseguiu esta proeza, na Alemanha.
No Oriente Médio, na África, na América Latina, governos de todos os matizes, o mundo entrou na Obamamania.
E entrou por que Obama fala em retirar as tropas do Iraque, mostra indignação com Abu Graib e Guantanamo, fala em diálogo com os tradicionais inimigos do império, fala em multipolaridade.
O contraste com a era Bush e seus falcões do Pentágono é gritante.
Nos Estados Unidos, Obama tornou-se o leito para onde convergiram a vergonha até então escondida da sociedade norte-americana com a era Bush, com suas torturas institucionalizadas, suas mentiras desmentidas publicamente, seu belicismo economicista e medieval, sua notória estupidez tão competentemente satirizada pelo documentarista Michael Moore.
Obama, como um alquimista, transformou esta vergonha em seu avesso, em orgulho e votos.
Tornou-se também o leito para onde migraram os sentimentos do soul de James Brown e Ray Charles, dos jovens rappers, a magia de deuses da NBA como Magic Johnson e Michael Jordan, o ativismo negro hollywoodiano de Spike Lee e Denzel Washington, a luta pelos direitos civis do pastor King e Jesse Jackson.
Assim, mobilizou a ampla maioria da sociedade norte-americana por um propósito de mudança, venceu em redutos históricos dos republicanos, despertou a juventude, os pobres, afro-descendentes, latinos e outros imigrantes, setores médios, levando o processo eleitoral a bater recorde de comparecimento às urnas, e vencendo uma eleição de regras confusas com mais de 2/3 dos votos do seu concorrente, desafiando inclusive os institutos de pesquisa, que lhe davam margem apertada de vantagem.
Conscientemente ou não, Obama colocou em movimento forças transformadoras que talvez já tenham escapado ao seu controle e de seu partido, num momento de grave crise econômica.
Estas forças, que já estavam lá, mas que não tinham como aflorar, são um verdadeiro movimento de massas, são o que existe de mais progressivo até aqui em todo este enredo, uma inflexão relevante e organizada na opinião pública norte-americana com um viés de esquerda.
Em seu governo, Barack Obama deverá, nas palavras de Sarkozy, tentar refundar o capitalismo, o que na prática significará salvar os capitalistas.
Ao tentar faze-lo, poderá entrar em forte contradição com a Obamamania, que exige paz e bem estar social, reivindicações que não combinam com o capitalismo em fase terminal que vivemos.
A briga é boa, as contradições são grandes, mas a correlação de forças melhorou um pouco para os que lutam por um mundo melhor.
PS: Presidente do PSOL/PE e membro da sua Direção Executiva Nacional