Por Carlos Eduardo Santos, de Cidades/JC Na Idade Média, o preso condenado, antes de cumprir a pena, passava por um ritual de suplícios.

Não bastava a sentença – seja de morte ou privação de liberdade –, precisava ser humilhado em praça pública, pedir perdão.

A multidão daquela época se apinhava para assistir àquele teatro do absurdo.

Os séculos se passaram, mas a punição não só continua sendo tratada como espetáculo, como é uma triste realidade em Pernambuco.

Com uma dose de “criatividade” e uma câmera digital na mão, policiais do Estado estão gravando cenas de humilhação com pessoas detidas nas ruas do Grande Recife e interior.

São imagens que chocam.

A platéia que no período medieval precisava ir à praça para testemunhar a punição moral, agora não precisa nem sair de casa.

Basta um clique no mouse do computador.

Isso porque, os registros estão sendo lançados no You Tube – site de compartilhamento de vídeos – e podem ser vistos por qualquer um no mundo que tenha acesso à internet. É possível encontrar no site diversos vídeos gravados por policiais pernambucanos.

Em um deles, PMs da Ronda Ostensiva com Apoio de Motocicletas (Rocam) obrigam três jovens, já algemados com as mãos para trás, a dançar e repetir a frase “A Rocam é f…, a Rocam é f…” Sentados na mala de uma viatura da Polícia Militar, cantam o refrão sob risadas dos policiais.

Ainda é possível ouvir a voz de um dos PMs mandando eles cantarem mais alto e depois os obrigando a dizer em coro “Eu sou todo feio, eu sou todo feio.” No mesmo vídeo, que tem duração de 44 segundos e foi registrado no site com a data de 3 de novembro de 2007, os jovens aparecem caminhando em uma calçada.

Um dos policiais manda que o grupo balance a cabeça de um lado para o outro e continue cantando a música que faz alusão à Rocam.

Nesse momento, é possível identificar uma Ecosport do serviço 190 da PM.

Esse tipo de viatura foi substituído no ano passado em Pernambuco.

Em um outro link, mais constrangimento.

Sob ameaças dos policiais, dois jovens são obrigados a se beijar na boca. “Bora, beija.

De língua, quero ver a língua”, diz um policial.

A mesma voz pede para que os suspeitos olhem para a câmera. “Agora olha para cá e diz: a Rocam é f…” O comando é obedecido imediatamente pelos jovens, que logo depois são incentivados a dar mais um beijo.

São 19 segundos de humilhação.

Os vídeos que mostram cenas explícitas de agressão moral realizadas pela polícia pernambucana não são difíceis de encontrar no You Tube.

Em uma rápida pesquisa, várias imagens dessa natureza podem ser acessadas.

E as gravações não são feitas apenas nas ruas, durante abordagens.

Em um dos vídeos localizados pela reportagem do JC, a captação das imagens é realizada em uma delegacia de Limoeiro, no Agreste.

A gravação mostra um preso, atrás das grades, questionado por uma pessoa sobre quem manda no Estado. “Pernambuco é o Gati (Grupo de Ações Táticas Itinerantes da PM)”, responde o homem que logo após afirma, rindo, que o Gati “mete o pau mesmo.” O responsável pela filmagem, possivelmente um policial, não consegue segurar a risada.

ROTINA NA PERIFERIA As cenas de humilhação protagonizadas por policiais pernambucanos fazem parte da rotina de muita gente na periferia do Recife.

Na semana passada, o JC visitou comunidades da capital e identificou os locais onde algumas das imagens podem ter sido gravadas.

Mesmo sem assistir aos vídeos, questionados sobre o tratamento da polícia durante abordagens de rotina, jovens do Coque e dos Coelhos, na área central do Recife, descrevem as cenas com riqueza de detalhes. “Fazer o pessoal cantar e dançar algemado é comum.

Eles humilham mesmo.

Criança e adolescente na mão da polícia sofre aqui”, destacou um rapaz de 18 anos, morador do Coque e que por medo de represálias não quis ser identificado.

Nos Coelhos, em cinco minutos de conversa com um grupo de adolescentes, foi possível ouvir várias histórias. “Pior é quando eles mandam beijar na boca”, lembrou um deles.

Observação do Blog: A pedido de entidades de direitos humanos, não postamos os vídeos mencionados na matéria do JC.