Por Paulo Sérgio Scarpa, no Pernambuco A primeira advertência surge na primeira linha do prefácio: “Esse livro é “a biografia de alguém que nunca teve vida”.
Mas foi na entrevista exclusiva a Pernambuco, a primeira em que falou sobre seu livro, que o advogado pernambucano José Paulo Cavalcanti, sessenta anos, explicou o que disse: “Esse é o livro que eu gostaria de ler sobre o poeta”.
E completou: “O que não quer dizer seja o que os outros também irão querer ler”.
O poeta é o português Fernando Pessoa, seus muitos heterônimos, o gênio mais cultuado da literatura portuguesa depois de Luis de Camões.
José Paulo volta a avisar, porém, que o livro, montado e remontado nos últimos seis anos, é uma espécie de quebra-cabeça a ser decifrado pelo leitor, já que ele propõe uma desconstrução do poeta a partir de parceria inimaginável para se compreender melhor a obra. “Os trechos com aspas são dele, sem aspas sou eu”, contou, como mais uma dica sobre o que o leitor deve esperar.
Cavalcanti leu e releu a obra do poeta tantas vezes que já recita trechos inteiros de cor.
José Paulo dá mais uma pista sobre o que propõe divulgar com a publicação de seu livro sobre Pessoa, que já tem mais de setecentas páginas e irá para a editora - quem sabe? - ainda este ano: “Pessoa é um autor sem imaginação”, vaticina.
Como? “Descobri que, mais que sonhador, era um cronista do cotidiano.
Tudo o que ele escrevia estava em volta dele ou era a vida dele”, explicou.
Em carta ao poeta açoriano Armando César Côrtes-Rodrigues (19 de janeiro de 1915), Pessoa confessa invejar “aqueles de quem se pode escrever uma biografia ou que podem escrever a própria”, lembra Cavalcanti, citando ainda Octávio Paz: “Nada na sua vida é surpreendente, nada, exceto os seus poemas”.
Por isso, concorda com Eduardo Lourenço: “Custa-me imaginar que alguém possa um dia falar melhor de Fernando Pessoa que ele mesmo”.
O livro, porém, adverte novamente Cavalcanti, “não é feito para especialistas, estes ‘homens que sabem qualquer coisa de uma coisa e nada de todas as coisas’.
Por essa razão, volta a advertir, “muita gente que não sabe ler os textos dele é traída por isso”.
Para ilustrar, conta que a poesia “Liberdade” costuma ser recitada como se fosse uma grande brincadeira do poeta, “mas é poesia de protesto”.
Censurada, era recitada nos bares de Lisboa em atos de resistência, contou.
O verso “Flores, música, o luar, e o sol, que peca só quando, em vez de criar, seca” embute uma realidade política. “O sol é sempre Portugal que, ao invés de criar com a democracia, seca com a ditadura”, decifra o advogado.
E os versos “Mais do que isto / É Jesus Cristo”/ Que não sabia nada de finanças”, referência ao fato de que Antonio Salazar havia sido Ministro das Finanças. “Quando se conhece a vida de Pessoa, se descobre que escreveu tanto, que era possível contar a vida dele com as palavras dele. “É claro que nem sempre se pode contar na data que ele escreveu.
Ele sabia, por exemplo, o ano em que ia morrer por ser um astrólogo competente.
No último ano de vida começou desesperadamente a organizar os papéis, a escrever.
Só que ele tinha tanta angústia por escrever que não teve tempo de escrever sobre sua angústia de morrer.
Por isso, quando descrevo o último ano de sua vida, me sirvo de palavras que ele escreveu em 1917/18, quando teve uma grande crise”.