Carlos Heitor Cony, na Ilustrada No meu entender, discutir o acordo ortográfico assinado há dias pelo presidente da República parece que não levará a nada.
Pode prevalecer por um algum tempo, como as nossas Constituições anteriores, mas de tempos em tempos, além de modificá-las, fazemos uma nova.
Em primeiríssimo lugar, pergunto se há realmente necessidade cultural e prática para estabelecer regras ortográficas a serem usadas pelos países de língua lusófona.
Em geral, cita-se o respeito que devemos ter pela matriz, que é o português.
Mas daí a dúvida: que português e que ortografia devem ser respeitadas agora e no futuro?
O português e a ortografia de Camões ou Frei Luiz de Souza?
Ou de Pero Vaz Caminha que escreveu a certidão de nascimento de um país recém-descoberto?
Para não ir muito longe, como adotar a ortografia de nossos clássicos, de José de Anchieta ou de Machado de Assis?
Como aquela “dona” da ópera de Verdi, a linguagem “è mobile”, e a ortografia também.
Agora mesmo, quando se procura unificar a maneira de escrever palavras, está surgindo uma nova ortografia, até certo ponto radical, usada inicialmente pelos internautas, mas que está vazando para textos literários e do uso cotidiano. “Bj” e “tb”, para citar os mais freqüentes, substituem “beijo” e “também”.
Uma simplificação?
Ou uma agressão à norma dita erudita?
Temos o caso de simplificação mais radical na expressão “Vossa Excelência”, que foi reduzida para “vosmicê” e terminou na forma simpática e não contestada de “você”.
Bem verdade que a própria redução foi reduzida e há tempos que usamos o simples “v” para a mesmíssima coisa.
São respeitáveis os argumentos a favor do acordo.
Houve outros, no passado, que foram desacordados pelo uso e abuso.
No espaço de minha geração, enfrentei várias ortografias, inclusive aquela que aboliu o “w”, o “y” e o “k”.
Houve jornais que passaram a escrever Cubisticheque, quem menos gostou da idéia foi o próprio Kubistchek. “Brincadeira tem hora”, disse-me ele.
Eu próprio fiquei chateado quando até uma enciclopédia grafou o meu nome sem o “y”.
No meu caso, não se tratava de uma pinimba, como em Gilberto Freyre, mas do nome de meus antepassados.
Os adeptos daquela ortografia diziam que o camarada tinha o direito de escrever o próprio nome como bem entendesse, mas os outros não.
Esqueceram o fundamental: o nome é, digamos, a marca industrial, a “trademark” de um indivíduo.
Em termos de norma culta, a marca do carro Simca devia ser Sinca.
E a Telefonica devia ser Telefônica, para estar de acordo com a acentuação das palavras proparoxítonas.
Considerar o acordo como um instrumento poderoso para a unificação cultural e espiritual dos povos lusófonos é apenas uma boa intenção.
Esta unificação deve existir sem necessidade de obrigarem os portugueses a escrever “facto” e “fato” com sentidos diferentes.
Pensando bem, e analisando historicamente as palavras, há mais sentido em Portugal quando ali escrevem “súbdito” em vez de “súdito”.
O prefixo “sub” inclui a idéia de submissão e não de “sumissão”.
Autores brasileiros reclamam quando seus livros são traduzidos para o português de Portugal.
Por acaso, tenho dois livros ali publicados: um foi traduzido literalmente, trem virou comboio e diretor virou director.
Honestamente, não me senti insultado.
Na versão francesa do mesmo romance, “pacote” virou “paquet”.
E daí?
O outro, mais recente, foi transcrito tal como o escrevi, mas com abundantes notas ao pé de página. “Dar sopa” foi explicado como “proporcionar” e “torcer” como “desejar”.
Nos dois casos, o da tradução e o da nota ao pé de página, não foi prejudicada a essência -se é que meus livros têm alguma essência.
Insisto no respeito e na admiração aos abnegados amantes da língua, aqui e em Portugal, que gastaram anos de pesquisa e trabalho na tentativa de unificar a ortografia a ser usada oficialmente no Brasil, Portugal, Angola, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Timor Leste.
Alvíssaras para o nosso idioma, que segundo Fernando Pessoa, deve ser a nossa pátria.
Foi um enorme esforço que os portugueses poderiam classificar de “bestial”.