De tsunamis e marolinhas Por Pasquale Cipro Neto E A CRISE anda braba, brabíssima, tanto quanto a ubérrima (adoro esta palavra) desfaçatez, dissimulação, ingenuidade, ignorância ou irresponsabilidade de figuras públicas de todos os jaezes.
No último sábado, ao referir-se à crise, o presidente da República foi taxativo: “Ela é lá um “tsunami”, e aqui vai chegar uma marolinha, que não vai dar nem para esquiar”.
O que ocorreu de sábado até ontem mostra que o presidente tinha plena razão.
Economia não é minha praia, digo, área; navego em águas, digo, ando em terreno um pouco mais tranqüilo quando o assunto é texto, poesia, romance, letra de música etc., por isso, Presidente, aconselho-lhe (data venia) a (re)leitura de algumas obras-primas da nossa literatura que trataram de tão proceloso, digo, inquietante e perigoso tema (refiro-me ao mar, é claro).
Poderíamos começar pela antológica canção “O Mar”, do imortal Caymmi, mas essa letra fala de quebra (“O mar, quando quebra na praia…”), e, neste momento, convenhamos, é melhor não tratar disso.
Passemos a outra obra, pois.
Que tal Machado?
Vamos a um trecho de “Dom Casmurro” (sobre os olhos de Capitu): “Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade do estilo, o que eles foram e me fizeram.
Olhos de ressaca?
Vá, de ressaca. É o que me dá idéia daquela feição nova.
Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca”.
Calma, leitor!
A ressaca em tela não é aquela. É a do mar.
Resulta de “re-” + “saca”, que, no caso, significa “a onda que avança para a praia”.
A ressaca, portanto, é o “refluxo de uma vaga, depois de se espraiar ou de encontrar obstáculo que a impede de avançar livremente” (“Aurélio”). É, Presidente, as sacas vão e vêm.
Refluem.
Voltam.
Tentam.
Batem na pedra.
Voltam.
Até que, água mole em pedra dura…
Deixemos Machado e passemos a estes mais do que sábios, sapientíssimos versos de “O Mar”, de Gonçalves Dias: “Oceano terrível, mar imenso / De vagas procelosas que se enrolam / Floridas rebentando em branca espuma / Num pólo e noutro pólo, / Enfim… enfim te vejo; enfim meus olhos / Na indômita cerviz trêmulos cravo, / E esse rugido teu sanhudo e forte / Enfim medroso escuto!”.
Agora uma letra do grande Jorge Portugal (de “Memória das Águas”, melodia de Roberto Mendes): “Amores são águas doces / Paixões são águas salgadas / Queria que a vida fosse / Essas águas misturadas / Eu, que já fui afluente / Das águas da fantasia, / Hoje molho mansamente / As margens da poesia / (…) E foi assim pela vida / Navegando em tantas águas / Que mesmo as minhas feridas / Viraram ondas ou vagas / Hoje eu lembro dos meus rios / Em mim mesma mergulhada / Águas que movem moinhos / Nunca são águas passadas / Eu sou memória das águas / Eu sou memória das águas”.
Por fim, Presidente, chego a Cecília Meireles e a seu impressionante poema “Mar Absoluto”, do qual extraio esta legatória estrofe: “O mar é só mar, desprovido de apegos, / matando-se e recuperando-se, / correndo como um touro azul por sua própria sombra, / e arremetendo com bravura contra ninguém, / e sendo depois a pura sombra de si mesmo, por si mesmo vencido. É o seu grande exercício”.
Com a devida vênia, Excelência, não brinque com o mar. É isso.
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