Diante das divergências internas do Poder Judiciário nacional a respeito das prisões e solturas do banqueiro Daniel Dantas, que remetem ao papel da Justiça na sociedade, vale a pena reler a entrevista que o juiz pernambucano Mozart Valadares, presidente da influente Associação dos Magistrados do Brasil, concedeu à Algomais, a revista de Pernambuco.
A entrevista foi publicada na edição 22, de janeiro de 2008.
Na ocasião da entrevista, Valadares preparava-se para assumir a presidência da AMB.
Uma Justiça para o cidadão O Judiciário está servindo hoje ao infrator, a quem tem uma obrigação e não quer cumprir.
Por Antonio Magalhães, no site www.antoniomagalhaes.com.br Um matuto de Tabira, no sertão pernambucano, é hoje o representante máximo dos magistrados do País.
O juiz Mozart Valadares, 49 anos, que saiu da sua cidade em 1972 para estudar no Recife, foi eleito com mais de 80% dos votos de 13 mil juízes para presidir a Associação dos Magistrados do Brasil (AMB) de 2008 a 2010.
Antes de disputar o cargo, Valadares comandou a associação pernambucana de magistrados por dois mandatos e ocupou até dezembro a vice-presidência da AMB.
A associação quer promover um arejamento no Poder Judiciário, firmando posições em defesa de uma gestão moderna do poder e da melhoria dos serviços jurídicos, dando condições decentes de trabalho aos juízes de primeiro grau em comarcas distante.
Por influência de tios afins, desembargadores do Tribunal de Justiça de Pernambuco, Mozart Valadares se motivou para a carreira jurídica.
Estudou Direito na Universidade Católica.
Foi servidor, por concurso do TJP e em 1989, também por concurso, chegou à magistratura.
Passou por comarcas do Interior até a assumir a titularidade da Oitava Vara da Fazenda Pública, da qual se encontra licenciado para exercer a representação dos colegas.
Na entrevista a Algomais, Mozart Valadares fala do mundo jurídico local e suas peculiaridades.
Algomais - O que é um juiz de Direito?
Mozart Valadares - É uma pessoa com senso apurado de justiça.
Honesta, que pode identificar através das provas o direito de cada um.
Deve ter um bom preparo intelectual e conhecer as leis.
Além disso, hoje se exige sensibilidade social do magistrado.
Ele não pode centrar sua atividade unicamente no processo.
Tem que ter uma visão ampla das questões sociais.
Da questão da propriedade privada, do direito do consumidor, da economia globalizada, da obrigação do Estado com a segurança e a saúde pública.
Hoje o juiz é acionado para internar alguém numa UTI ou obrigar o Estado a dar o remédio a um pobre.
Portanto, o juiz de hoje, o juiz moderno, tem que ter uma visão global do mundo e saber a sua função social.
Ele é um transformador social que pode contribuir, sem ferir a Constituição e as leis, para diminuir as desigualdades e fazer com que o Estado trate melhor o cidadão.
Am - Mas a Justiça continua lenta que gera injustiça.
MV - Concordo plenamente.
Quando a Justiça demora muito a dar uma resposta ao cidadão, ela comete de alguma forma uma injustiça.
Essa é uma questão do Judiciário, mas também não é só dele.
Outros fatores contribuem para o retardamento: temos uma legislação com excesso de formalismo.
Com excesso de recursos em várias instâncias.
A sociedade poderia ajudar exigindo dos legisladores leis que atendam a população brasileira e não a uma parcela dela.
A morosidade do Judiciário, o retardamento das ações só beneficia uma classe: a elite brasileira.
O Judiciário está servindo hoje ao infrator, a quem tem uma obrigação e não quer cumprir.
AM - Qual a contribuição dos juízes para apressar os processos?
MV - A população não tem conhecimento do funcionamento do Judiciário.
Por exemplo, se um inquérito demora 10 anos numa delegacia, cai na conta do Judiciário.
Se o promotor demora com o processo, cai na conta do Judiciário.
A população não distingue o que ação da Polícia, do Ministério Público e do Judiciário.
O que o juiz pode fazer?
Ele pode questionar algumas políticas da cúpula do Judiciário sobre o orçamento, sobre condições de trabalho para os juízes de primeiro grau, se tem funcionários suficientes nas comarcas do Interior.
Se essas comarcas têm Promotor, Defensor Público, delegado de Polícia. É um conjunto de fatores que a magistratura deve questionar para desenvolver um bom trabalho.
Quantos réus presos não são apresentados à Justiça e a audiência é cancelada.
Ou seja, uma má conduta do Executivo, que não oferece o transporte ao preso, que também cai na conta do Judiciário.
Am - O que o senhor quer dizer com o questionamento das políticas da cúpula do Judiciário?
MV - Muitas vezes os presidentes dos tribunais de Justiça chegam ao cargo desobrigados de compromissos com a base.
Não têm a menor noção do que se passa nas comarcas do Interior.
O orçamento é feito sem que os juízes se pronunciem sobre suas necessidades.
O sistema o leva à presidência sem discutir questões administrativas com a magistratura.
Ele aplica o orçamento onde é mais interessante para ele.
Sacrifica a informatização do Poder para a construção de fóruns.
Sacrifica o concurso de novos servidores para promover intercâmbios internacionais de desembargadores.
Queremos discutir prioridades para melhorar a gestão.
E isso, sem dúvida, vai refletir na melhoria da prestação de serviços jurídicos.
Am | Esse tema provocou um conflito entre a Associação de Magistrados do Estado e o Tribunal de Justiça de Pernambuco?
MV - Provocou.
Mas estamos no caminho certo.
Fizemos o 3º Congresso Estadual dos Magistrados para analisar a gestão, o planejamento e o orçamento do judiciário pernambucano.
O novo presidente do TJP, desembargador Og Marques, me chamou e comunicou que para 2008 não há como mudar o orçamento, pois já está pronto.
Mas em 2009 ele disse que vai regionalizar o orçamento, atendendo as prioridades de cada região do Estado, atendendo as demandas do Interior.
Isso já é uma mudança de postura. É um avanço.
Am - Foi fácil a mudar a mentalidade do Tribunal de Justiça?
MV - Essa é uma decisão pessoal do desembargador Og Marques.
Mas continua existir uma certa dificuldade para mudar porque ninguém quer perder uma parcela de poder.
O TJP é muito resistente às mudanças.
A grande maioria dos desembargadores trata o espaço público como se fosse privado.
E não quer que ninguém interfira na sua política interna, no espaço de poder deles.
Em outros estados brasileiros já existe um arejamento Em Santa Catarina, a AMB foi homenageada pelo Tribunal de Justiça do Estado.
Aqui a AMB é recriminada por um tribunal conservador, retrógrado, intolerante às mudanças.
Am - Por que o TJP é tão conservador?
MV - É o sistema.
O TJP está tendo uma grande renovação na faixa etária dos desembargadores e só.
O sistema favorece ao conservadorismo porque ainda não foi possível implantar critérios objetivos na promoção.
Para ser promovido para o TJP é preciso que o candidato faça uma peregrinação pelo gabinete dos desembargadores, assumindo compromissos que esse colegiado não abre mão.
Então se chega lá sem independência.
Sem poder questionar aqueles magistrados.
Quem quiser chegar ao TJP tem que se adaptar a esse sistema sob pena de ser alijado do processo.
O sistema faz com que haja uma renovação na idade, mas não nos propósitos.
Não há democracia interna no Poder Judiciário Estadual.
O sistema não premia o mérito do escolhido, mas aquele que se submete à política do tribunal.
Am - O que a base dos magistrados pensa dessa questão?
MV - Na última pesquisa sobre a magistratura pernambucana mais de 75% dos juízes ouvidos na enquete disseram que nunca foram consultados pelo TJP sobre as condições de trabalho.
Ora, os juizes de primeiro grau são membros do Poder Judiciário e têm que participar da administração deste poder.
No município, eles representam o Judiciário.
A cobrança da população é para o juiz da comarca e não para o Tribunal de Justiça.
Apenas se pede que dê ao juiz a oportunidade de opinar e participar da administração para que depois se possa cobrar dele um bom trabalho.
Am - A influência política nas nomeações dos desembargadores tem sido objeto de discussões entre os juízes?
A AMB faz campanha contra o Quinto Constitucional que prevê que, de cada cinco juízes nomeados para os tribunais, um deve ser egresso da advocacia ou do Ministério Público.
MV - É uma questão muito preocupante.
Para ingressar no Poder Judiciário a melhor maneira ainda é o concurso público.
Quando se analisa o mérito do candidato. É intenção nossa diminuir a influência político-partidária nas nomeações.
Pesquisas apontam que a magistratura se posiciona contra o Quinto Constitucional.
A atividade de magistrado de primeiro grau, concursado, não permite que ele tenha articulação política-partidária.
Geralmente quem vem do Quinto esteve na militância, na articulação política.
Porque na atividade de advogado e promotores não há qualquer questionamento sobre a atividade política de cada um.
Portanto, a probabilidade dele chegar num tribunal superior é bem maior do que um juiz de carreira.
Enquanto o juiz estava no Interior julgando processos, ele estava junto às pessoas que vão nomeá-la.
Então é natural que se deva o favor, a gentileza, para aquele que deu de presente um cargo vitalício com uma das maiores remunerações do País.
Em algum momento a credibilidade do julgamento pode ser arranhada por conta da nomeação.
Am - Isso acontece também nas nomeações para os tribunais superiores?
MV - Vários ministros do Supremo Tribunal Federal foram auxiliares diretos de presidentes da República. É inadmissível que mais adiante eles julguem matérias de interesse do Executivo que os nomeou.
Por exemplo, nos oito anos de governo, Jarbas Vasconcelos nomeou seis desembargadores de um colegiado de 39.
Aqui não digo que os nomeados por Jarbas deram qualquer sentença para agradá-lo.
Am - A sugestão é fechar o Judiciário só para os juízes de carreira?
MV - Exato.
Isso para os tribunais regionais federais e tribunais de justiça dos estados.
Somente o Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal não seriam privativos dos magistrados de carreira.
O STF é a casa que interpreta a Constituição do País.
Por isso é importante que não seja exclusivo dos juízes concursados.
Nos outros tribunais, não faz sentido ter o Quinto Constitucional.
Ele foi criado supostamente para oxigenar o Poder Judiciário, mas quero que alguém me mostre um exemplo concreto de que isso ocorreu.
Pelo contrário, passam a ser magistrados completamente adaptados ao sistema já existente.
Am - Isso não seria corporativismo?
MV - Aponte-me qualquer transformação trazida pelos magistrados escolhidos pelo Quinto Constitutcional.
Relate-me alguma inovação produzida pelos desembargadores do Quinto?
Am | Juiz erra quando julga?
MV - Erra.
Nós somos seres humanos.
Tanto que a legislação permite recursos para que a matéria seja reexaminada.
Nosso sistema jurídico tem o duplo grau de jurisdição.
Toda sentença cabe um recurso.
Am | Mas quem erra é punido?
MV -| O juiz não pode ser punido por ter interpretado a legislação diferente do Tribunal de Justiça.
Mas se for possível provar que a sentença é fruto da fraude ou de suborno, o juiz será punido.
As punições são variadas, a remoção compulsória, exoneração, a indisponibilidade.
Questiona-se por que o juiz afastado, respondendo a algum inquérito, continua recebendo o salário.
Ora, ele está afastado mas não pode exercer qualquer atividade, então tem que sobreviver.
Caso seja condenado, perde tudo.
Am - Grandes palácios de Justiça, fóruns luxuosos, ritualística aristocrática e linguagem rebuscada são formas do Poder Judiciário ficar acima do cidadão?
MV - Infelizmente isso faz parte da nossa origem.
Hoje só uma minoria mantém o rito e a formalidade.
No interior do Estado, o juiz faz parte da sociedade.
Há também críticas à linguagem jurídica.
O juiz ao dar um despacho está se referindo a um cidadão comum.
Ele tem o direito de entender a sentença.
Queremos um Judiciário mais acessível, feito para servir a população e não a juizes, desembargadores e ministros.
Portanto, a cultura do formalismo está em extinção, como os grandes palácios.
Nós queremos boas condições de trabalho, prédios funcionais e não luxo.
Porém ainda há exemplos negativos que desgastam a Justiça: no Paraná, o juiz proibiu um trabalhador desempregado de participar de uma audiência porque estava de sandália e mal vestido no entender do magistrado.
Na Paraíba, uma juíza disse que os juizes eram seres superiores.
Ainda bem que esses são apenas uma minoria.
A maioria dos magistrados se sente como um cidadão com direitos e deveres.
E temos exemplos também de práticas bem sucedidas fora dos fóruns.
Am - Como presidente da AMB como o senhor vê o desmantelamento do Judiciário na Venezuela, Bolívia e Equador?
MV - A nossa democracia atingiu um estágio que não permite mais qualquer retrocesso a respeito do judiciário.
Já na vizinhança o tema é motivo de preocupação permanente da associação.
A AMB levará essa discussão para a Federação Latinoamericana de Magistrados e para União de Magistrados Internacionais.