Por Assuero gomes assuerogomes@terra.com.br Admiro as pessoas que têm capacidade de fazer o que eu não consigo.

Compor, tocar algum instrumento, cantar, dançar e interpretar.

Admiro quem consegue sobreviver em condições extremas e mesmo assim sorrir da vida e manter a fé, admiro, e como admiro!, as pessoas que conseguem sobreviver a uma tortura sem negar seus ideais, sem delatar, sem transigir, sem negociar, confesso que não sei se conseguiria.

Admiro os colegas que trabalham nas grandes emergências da rede pública de saúde de Pernambuco e quiçá de todo nosso injusto país.

Venho refletindo sobre isso há bastante tempo e premido pelas minhas limitações confesso que não tenho estrutura psicológica nem espiritual para suportar uma hora sequer nestes serviços, que se tornaram a ante-sala do inferno, e em alguns momentos o próprio inferno.Um médico decidir, em meio à dor, ao sofrimento, à carência de tudo, quem pode ser tratado, quem deve morrer e quem deve sobreviver é sobre-humano, ou melhor, totalmente desumano; para com os necessitados e para consigo mesmo. É a própria esquizofrenia feita em carne, ossos e sangue.

Creio que há uma ruptura entre a realidade suportável e a situação real.

Uma sublimação do sofrimento por outra situação de vazio.É evidente que este problema não é específico deste governo estadual. É uma situação crônica que vem se aprofundando, e já está no abismo, numa fenda social.

Esta fenda é reparada superficialmente de tempos em tempos com remendos temporários.

Reflete a escolha que o país fez em priorizar o capital em detrimento do trabalho, em priorizar o bem-estar das elites em vez da imensa maioria do povo, e por aí vai o descaminho, na educação, na segurança, no transporte e na saúde.

Há muito estamos no limiar de uma ruptura total e se já não houve uma revolta popular organizada, foi porque as forças sociais estão dissipadas e a grande massa dos jovens da periferia foi cooptada pelo narcotráfico, que organizou uma sociedade paralela.

Voltando à questão da saúde pública e mais especificamente aos médicos e médicas que trabalham no setor, creio que não restará outra saída a não ser a demissão voluntária, independente de orientação sindical, de movimento médico, de acordos, de mídia.

As margens estão estreitas demais, sufocantes até.

Não será a questão da remuneração que dirá a última palavra, mas a questão de consciência.

Aprofundar-se-á então a crise.

E será tão radical que então emergirá do abismo uma solução definitiva.

Não há dentre todos os médicos que trabalham nas emergências um sequer que não tenha a capacidade de colocar um consultório por mais simples que seja e trabalhando dignamente, mesmo a preço popular, auferir um rendimento igual ou superior ao pago pelo serviço público; com uma qualidade de vida infinitamente superior à que tem, trabalhando numa destas emergências.

Quando os colegas pararem para refletir o que estão fazendo com suas próprias vidas, com as de suas famílias e com as vidas dos pacientes, certamente serão demissionários.

Sem medo, sem culpa.

O que aparentemente será cruel para com os necessitados, em um primeiro momento, será como um testemunho e sacrifício de onde brotará a vida, e vida mais plena e mais digna para estes mesmos necessitados, para os médicos e para seus familiares.

PS: Assuero Gomes é médico e diretor de Imprensa do Simepe (Sindicato dos Médicos de Pernambuco).