De Veja Há muito tempo se sabe que a polícia fluminense é contaminada pela corrupção e pelo envolvimento com bicheiros e traficantes de drogas.

Também era notória sua ineficiência.

Com 51 homicídios para cada 100 000 habitantes, o Rio é o segundo estado mais violento do país.

Mesmo assim, a operação da Polícia Federal, chamada Segurança Pública S.A., que prendeu sete policiais na semana passada, causou surpresa.

Dela resultou o indiciamento do ex-governador Anthony Garotinho por formação de quadrilha armada.

Nunca antes um político tão proeminente havia sido acusado de crime tão grave.

Garotinho, que já foi candidato à Presidência da República e atualmente preside o PMDB no estado, representa o que há de pior na política: populismo, fisiologismo e nepotismo, entre outras mazelas.

Ao seu currículo, soma-se agora a suspeita de ter usado seu período no Palácio Guanabara (e também o de sua mulher, Rosinha) para acobertar as ações de um grupo de policiais que, encastelados na chefia da Polícia Civil, barbarizou o Rio de Janeiro cometendo ilícitos variados.

A lista inclui facilitação de contrabando, formação de quadrilha, proteção a contraventores, cobrança para nomeação de delegados, lavagem de dinheiro, corrupção ativa e passiva.

Para a PF, Garotinho era o chefe político do bando, embora não haja provas até o momento de que tenha se beneficiado financeiramente.

Abaixo dele estava o deputado estadual do PMDB Álvaro Lins, que durante seis anos foi o chefe da Polícia Civil do estado.

Lins chegou a ser preso em um dos quatro imóveis que, segundo as investigações, foram comprados com a finalidade de lavar o dinheiro obtido ilegalmente.

Todos em nome de parentes.

Seu patrimônio é avaliado, por baixo, em 2,2 milhões de reais, e inclui carros de mais de 160 000.

Tudo isso comprado no momento em que seu salário era de 7 000 reais, ao passo que suas despesas mensais somavam 25 000, segundo uma planilha apreendida na casa de um dos integrantes da quadrilha.

O bando tinha como atividade principal dar cobertura a bicheiros ligados à máfia dos caça-níqueis.

Além de venderem proteção para um dos grupos que operam o jogo, Lins e seus camaradas são suspeitos de realizar operações contra bicheiros rivais somente para enfraquecê-los na disputa pelos pontos mais quentes.

A quadrilha também promoveu o loteamento de delegacias no Rio, nomeando delegados de confiança que cobravam propina dos investigados. “Os nomeados tinham o compromisso de fazer mensalmente um repasse em dinheiro que servia não só para o enriquecimento da quadrilha mas para financiar campanhas políticas”, diz o superintendente da PF no Rio, Valdinho Jacinto Caetano.

Num dos casos investigados, a polícia descobriu que a “caixinha” a ser repassada ao bando era de 25.000 reais.

Embora não tenha sido preso, Garotinho viu sua casa ser revistada por mais de quatro horas.

O ex-governador teria nomeado integrantes da quadrilha para funções estratégicas e, em pelo menos uma ocasião, teria falado ao telefone sobre as atividades ilícitas. “Sem a participação do ex-governador, a quadrilha não conseguiria se manter”, afirma o procurador regional da República Paulo Fernando Corrêa.

Entre as escutas telefônicas feitas pela PF, há uma em que Lins, já afastado para disputar as eleições, pede a Garotinho a troca de um delegado que não estaria colaborando com o bando.

O ex-governador se compromete a providenciar a mudança. “Então deixa que eu vou mandar fazer.

Deixa aqui.

Qual é o nome?”, diz Garotinho.

A mudança se consumou.

A denúncia do Ministério Público contra os dezesseis integrantes do bando será analisada pelos juízes do Tribunal Regional Federal da 2ª Região.

Na última sexta-feira, a Assembléia Legislativa do Rio (Alerj) mandou soltar Lins.

A instituição tem o poder constitucional de decidir sobre a manutenção da prisão de deputados, nos casos em que considere ter havido arbitrariedade.

Um parecer da procuradoria da Casa julgou a prisão ilegal.

Ele foi preso porque estava em um dos apartamentos supostamente comprados com dinheiro ilegal e colocados em nome de terceiros.

Na visão do MP e da PF, o fato de morar no imóvel caracterizaria o “estado permanente de flagrante”, figura jurídica que se aplica ao crime de lavagem de dinheiro.

A Alerj entendeu de outro modo.

A casa é presidida pelo deputado peemedebista Jorge Picciani, representado pelo mesmo escritório de advocacia ao qual Lins entregou sua defesa, o do criminalista Sergio Mazzillo – também advogado de Garotinho.

Caso seja condenado, o deputado poderá pegar entre onze e 36 anos de prisão.

Nos últimos anos, o Rio de Janeiro, em especial a cidade, tem vivido a angústia da criminalidade crescente e da inação da polícia.

Duas décadas atrás, isso ocorria porque o ex-governador Leonel Brizola se perdia em ações de puro populismo.

A polícia não subia às favelas para combater vendedores de drogas e, com isso, o tráfico se desenvolveu como um câncer pelas encostas da capital fluminense.

A escadinha do populismo, é claro, produziu oportunidades.

No governo Garotinho criou-se uma engrenagem de arrecadação marginal, revelada agora.

Também nesse período, milícias de policiais passaram a disputar espaço com traficantes no domínio de territórios em favelas e, uma vez instalados, eles começaram a explorar o jogo de caça-níqueis – além de ganhar em cima de atividades como distribuição de gás, canais de TV piratas e transporte alternativo.

Cada um a seu modo, os governos Brizola e Garotinho foram terríveis para a segurança no Rio de Janeiro.

O efeito da infiltração de grupos criminosos e corruptos na máquina estatal foi devastador.

Inclusive porque minou a confiança dos cidadãos nas instituições.

Na Chicago do período da Lei Seca, que vigorou entre 1920 e 1933, a organização criminosa controlada por Al Capone não só espalhou o medo e a violência pelas ruas da cidade como pôs na cadeira de prefeito, por três mandatos, o gângster “Big Bill” Thompson.

O Rio de Janeiro que surge das páginas do inquérito da Polícia Federal ao longo da operação Segurança Pública S.A é a Chicago brasileira.

Experiências internacionais recentes mostram que é possível limpar a corporação policial.

Um dos exemplos pioneiros ocorreu em Hong Kong.

Até os anos 70, a cidade tinha uma polícia tão corrupta que o chefe da corporação acabou fugindo para o exterior para não ser preso.

O episódio inspirou a criação de uma agência anticorrupção com poderes para passar em revista todas as atividades policiais e aplicar pesadas punições.

Ela acabou se tornando referência para outros países.

Em Nova York, nos anos 90, policiais envolvidos com o crime foram afastados e novos agentes foram treinados para preencher os cargos de confiança em setores estratégicos da polícia.

A faxina incluiu até mesmo uma mudança de uniformes, para romper com qualquer associação com a imagem de banditismo que a corporação tinha no passado.

A operação da última semana pode representar um marco na tentativa de limpar a corrupção na máquina fluminense.

Mas é preciso que o trabalho não pare por aqui.

Diz o procurador Paulo Fernando Corrêa: “O que chegou às nossas mãos é só a pontinha de um iceberg”.