Por Adriana Santana O repórter chega à redação.
Não há tempo para ler os jornais.
Senta-se ao computador, checa e-mails, acessa o Google.
Agora é só apertar a tecla ENTER que a notícia chegará a ele.
Da caixa de e-mails, dezenas de press-releases desenharão o que será a pauta do dia.
Pronto, agora é só reescrever os mais importantes e, bingo, está pronta a edição do dia seguinte.
Amanhã, a rotina se repete.
Poderia ser comigo.
Poderia ser com qualquer um que, abraçado ao jornalismo, vive no eterno embate entre a redação e a rua, entre a facilidade dos engenhos de busca e a aridez do confronto com o mundo lá fora.
Sem falar do relógio, que não pára de correr.
A descrição dessa cena fictícia foi realizada com farta dose de exagero.
Mas, descontadas as hipérboles narrativas, há vezes em que realidade e ficção podem se misturar e produzir, na vida real, rotinas tão burocráticas quanto a historieta contada no parágrafo de abertura.
O tempo, sempre implacável, é senhor e juiz do processo de formação da notícia.
E foi para entender as razões, incluindo o ‘fator-relógio’, que pudessem explicar a mesmice dos temas abordados pelos jornais, os textos semelhantes, o uso abusivo de informações produzidas em assessorias de imprensa, que embarquei no mundo acadêmico, através de dissertação de mestrado batizada de CTRL+C CTRL+V: O Release nos Jornais Pernambucanos.
Finalizada em 2005 no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco, está sendo aprofundada e expandida com a minha pesquisa de Doutorado, Jornalismo Cordial.
O que me levou a pesquisar sobre o assunto tem origem, primordialmente, no fato de eu ter me reconhecido nos dois papéis – do assessor, que tem como principal compromisso mostrar o lado mais positivo de seu assessorado -, e do repórter, que se esquece do compromisso maior com o leitor ao oferecê-lo informações gestadas no interior de empresas, e que são repassadas com o menor teor crítico possível.
Dessa forma, se há uma carapuça, ela certamente serviu também a mim.
Procurei não usar, assim, a posição de pesquisadora como escudo contra minhas próprias constatações.
O foco da pesquisa inicial era chegar a caminhos que comprovassem se o uso de releases (matérias jornalísticas enviadas por assessorias de imprensa aos veículos de comunicação, com objetivo de divulgar fatos que envolvam as organizações assessoradas) nas redações era realmente prática corriqueira e realizada em excesso e, ainda, compreender o porquê desse ‘hábito’.
Ao longo da realização do trabalho, as hipóteses iniciais para o ‘copia e cola’ foram se apresentando – ritmo acelerado de trabalho, quadros funcionais reduzidos, busca e medo do ‘furo’ –, ao passo em que, isoladas, também não se configuravam como única explicação plausível para o que se tentava comprovar.
Por que então os jornais têm feito tanto uso de informações oficiais como fonte única de informação?
Confesso que, por dois anos, essa foi a cantilena dos meus dias e noites.
Os resultados que se apresentaram na catalogação dos releases enviados pela assessoria de imprensa da Universidade Federal de Pernambuco – estudo de caso que escolhi para a dissertação – serviram como exemplo de que se tem utilizado quantidade considerável de material de assessorias de comunicação nas redações, configurando-se como prova – ao menos em relação à amostragem pesquisada – de que as assessorias chegam a conduzir, em algumas edições, a produção jornalística brasileira.
No período de um mês, 66% de tudo o que foi publicado em jornais sobre a Universidade foram ‘provocados’ pelas estratégias de divulgação da assessoria.
Mais ainda: 44,7% dos releases aproveitados foram veiculados com pouca ou mesmo nenhuma alteração, ou seja, a participação dos repórteres chegou a uma quase nulidade.
Diante do quadro que era apresentado, surgiu a suposição que uma espécie de conformismo estava se apoderando das redações e transformando o próprio modo de se fazer jornalismo.
O dia-a-dia dos jornalistas e a dinâmica de trabalho estavam criando uma acomodação.
Acomodação que leva o repórter a não contactar nem mesmo as fontes indicadas no release para confirmar as informações repassadas.
Acomodação que instrui o profissional a não sair da redação para ir em busca de notícias, a ficar na dependência apenas de e-mails e, quando muito, telefonemas.
JORNALISTA CORDIAL Seria muito simplista nomear ‘vilões e mocinhos’ na busca pelas causas do uso tão premente de informações oficiais como fonte única na imprensa.
O repórter não poderá ser de imediato taxado de desleixado – pois que o profissional mal pago, com excesso de trabalho e prazos a cumprir, sem estímulo para capacitação profissional e, por isso mesmo, insatisfeito no trabalho, talvez não consiga se dedicar à qualidade das informações publicadas no seu jornal.
Ao assessor, tampouco, deveria recair a ‘culpa’, uma vez que, salvo exceções, ele não terá o poder para decidir pelos editores e repórteres o que deverá ser a pauta do dia.
Se as sugestões dos assessores viram notícia nos matutinos é porque assim o permitiram os jornalistas que trabalham nos veículos.
O assessor, assim, só está fazendo – e competentemente – o seu trabalho. É ao repórter que cabe a responsabilidade pelo texto que escreve e as informações que apura – ou deixa de apurar.
A relação assessor versus jornalista ‘de batente’ nunca poderia ser apenas de parceria – o papel do segundo é checar, duvidar, investigar, escrever e melhorar o que escreveu.
Se não, está fadado a transformar-se em mero copiador de releases.
Complexa e perigosa é a tentativa de vislumbrar soluções imediatas para o problema.
Reformulações são necessárias, é certo, mas muito difíceis de serem implementadas a curto prazo, como mais tempo de apuração, investimento em capacitação profissional e (re)valorização da reportagem nos jornais.
São medidas indispensáveis, mas que envolvem muito mais do que boa vontade dos profissionais.
O grande propósito do meu trabalho é que as considerações a que ele chegou - os jornais têm feito uma utilização excessiva de releases, de modo a depender deles para se pautar – sejam levadas ao conhecimento de quem faz parte desse ‘jogo’: repórteres, editores e assessores.
E, claro, há também o público. Único envolvido no imbróglio que ainda permanece desconhecendo a prática.
Creditar a informação que vem das assessorias já seria um bom começo.
Ao leitor, portanto, que reste ao menos a opção da dúvida. - Numa tentativa de encontrar explicações para esse comportamento, a pesquisa tomou de empréstimo o conceito de ‘homem cordial’ de Sérgio Buarque de Holanda para descrever a persona do ‘jornalista cordial’ – uma categoria profissional que se caracteriza pelo não-cumprimento da função social de investigação e fiscalização, que opta por agradar a todos e evitar o conflito, esquivando-se de ir à busca das notícias onde elas realmente acontecem (na rua) e contentando-se em atuar como mero copiador de releases.
PS: texto editado no Pernambuco, suplemento da Cepe.