Burocracia, Impostos e a Morte Técnica Por Gustavo Krause Vou morrer.
Reuni a família e fiz este comunicado sem dramas ou lamúrias.
Com surpresa e preocupação, veio a pergunta: - Pai, é doença incurável ou suicídio anunciado? - Nem uma coisa, nem outra.
Vou praticar a “morte técnica”.
E explico.
Estou saudável; nem quero sair da vida voluntariamente.
A vida é, apenas, um intervalo entre o nascimento e morte, mas vale a pena ser vivida. – Então por que esta história de morte técnica?
Indagou, assustada, a primogênita. - Eu não sou eu, nem você é você; nós somos números, códigos, senhas, papéis, certidões, uma miríade de consumidores idiotas e contribuintes assaltados.
Aliás, o último dia de abril, fim do prazo para a declaração do imposto de renda deveria se tornar (já que tem dia de tudo) “o Dia Nacional da Tunga”.
Tiram da gente e não chega para quem devia.
Vai alimentar a canalha corrupta. - Calma, pai!
Ponderou o único varão. – Sosseguem.
Estou absolutamente tranqüilo.
E tá tudo planejado.
A morte técnica é o caminho.
Tentei ser um Indivíduo Não-Governamental (ING).
Consegui em parte, mas ninguém se livra totalmente deste mal cada vez mais desnecessário, chamado governo, que perde a “Guerra dos Mosquitos”; apanha dos bandidos; mata o doente pobre na fila dos hospitais, então…
Tentei ser um “Cidadão Informal”.
Impossível.
O “Big Brother” não deixa.
Câmeras e escutas estão em todo canto para bisbilhotar a vida de gente honesta porque os criminoso impunes estão em toda parte.
A burocracia é a indesejável companheira do berço (registro civil) ao túmulo (atestado de óbito).
O nosso sistema financeiro é o mais moderno do mundo.
Tente, por exemplo, depositar um dinheirinho a mais em espécie. É bronca!
Agora, meta a mão em milhões e mande o dinheiro para os paraísos fiscais.
Legal!
Ah!
Os bancos.
Um boa tarde, um sorrizinho de atendente bonita, água, minha netinha, para o velho pensionista…
Azeite quente das tarifas senhor velho, as mais altas do mundo em concubinato com o logro do empréstimo com desconto em folha, lascando os aposentados e enchendo a burra da banca e dos bacanas que inventaram a arapuca.
E por falar em tarifa, um amigo caiu na besteira de deixar 600 reais numa conta bancária inerte (inerte para ele); cinco meses depois estava no vermelho em 70 reais.
Mandou cobrir o “saldo devedor”.
Tarde demais.
Seu limpíssimo nome estava aonde?
No SERASA. - Tudo bem, pai, mas o que é “morte técnica”?
Insistiu a impaciência da caçula. – É o seguinte: vou fazer uma viagem de balão tal qual o Padre paranaense (coitado, morreu de leseira).
O balão vai desaparecer de mentira.
Vocês farão o drama.
Mídia, o escambau.
Krause está desaparecido e morto (para tristeza dos amigos e alegria dos inimigos).
Fato público e notório, vocês conseguem um atestado de óbito.
Deixe estar que o balão tem destino certo: uma ilha na Bahia (a Utopia do Século XXI) onde ninguém trabalha.
Lá todo mundo se chama Domingos e o grande amigo que vai me acolher por um ano é o Domingão, personagem atualizado de Robinson Crusoé, o Sexta-Feira.
Não deixarei débitos; não tenho seguro de vida, sequer a pendência do inventário: o que tem, já está no nome de vocês.
Morri.
Libertei-me de tudo.
Morri tecnicamente; morri para o mundo formal, o mundo da aporrinhação, da maldita burocracia, dos códigos; a minha morte é libertação do ser de papel cujo nome é um número.
Ressuscitarei no tricentésimo sexagésimo quinto dia, em carne e osso, e voltarei para vocês. - Pai, agora você endoidou de vez, disseram os cinco a uma só voz, como se fosse um coro ensaiado; como é que você vai viver?
E sobreviver?
E o Plano de Saúde?
Antes que prolongassem as perguntas do mundo dos “vivos”, entrei de dois pés: - Estarei morto!
Meu único documento será o atestado de óbito que, no Brasil, vale mais do que o cadáver.
Não esqueçam: estou tecnicamente morto e fisicamente vivo.
Carteira de identidade?
Estou morto.
Plano de Saúde?
Preencher formulários?
Atestado de óbito na cara do funcionário, perplexo, porém vencido pela força do papel que é muito mais importante do que a pessoa.
Fiquem tranqüilos!
Vai dar tudo certo.
E deu certo.
Um ano depois, passei a viver minha morte técnica.
Uma beleza.
No começo, surpresas.
Um grande jurista pernambucano deu um parecer notável; defendeu brilhantemente a tese da morte técnica; noveleiro, o jurista comparou minha conduta a de Marconi Ferraço, o ex-vilão da novela Duas Caras, recuperado pelo IBOPE.
No meu caso, o parecer demonstra que não houve fraude, tampouco a nova vida do “morto técnico” causou, nem causará danos.
Livre.
Liberdade absoluta que só a morte proporciona me fez viver o melhor dos mundos: mesadinha garantida pela família para as necessidades básicas; um charutinho de vez em quando; os amigos, contentes; os inimigos, putos da vida; as burocracias, derrotadas.
Todos se renderam à realidade do atestado de óbito ao qual anexei o parecer do grande jurista.
Do mundo dos vivos, somente duas coisas continuaram a fazer parte da agradável rotina: o endereço na internet (morto@mortotecnico.com); um trabalho leve para ganhar uns trocados – o de Ghost Writer (fantasma que escreve, sob encomenda, para os outros) – trabalho que já ocupa, hoje, grande parte do meu tempo.
Antes que eu esqueça: trocados sem recibo, afinal de contas estou morto e os mortos não pagam impostos.