Por Wilfred Gadêlha Dom Xavier Gilles, 73 anos, é um inconformado.

O bispo francês de Viana (MA) e presidente da Comissão Pastoral da Terra (CPT) esteve no Recife para visitar parentes e falou com o JC.

Entre outras coisas, criticou o governo federal, a transposição do Rio São Francisco e até o clero conservador.

E resumiu sua indignação: “Não há reforma agrária no Brasil”.

JC – Como o senhor analisa a questão agrária no Brasil?

DOM XAVIER GILLES DE MAUPEOU D’ABLEIGES – A questão não está resolvida por causa do eterno problema de que as águas correm para o mar.

Os ricos querem cada vez ficar mais ricos, deixando os pobres cada vez mais pobres.

O latifúndio continua, com outros disfarces, sob o nome de agronegócio, hidronegócio e assim por diante.

O povo elegeu Lula e eu acredito que ele poderia ter feito uma reforma agrária.

De qualquer maneira, a bancada ruralista não vai deixar nada parecido com uma verdadeira reforma agrária.

Depois, vem todo o neoliberalismo, com os Estados Unidos por trás.

E a força do dinheiro e o sistema capitalista destroem a natureza, os ecossistemas.

A questão é lucro, lucro, lucro…

JC - O senhor esperava, com o governo Lula, uma reforma agrária mais ampla?

DOM XAVIER – Não tem reforma agrária nenhuma.

JC – O senhor votou em Lula?

DOM XAVIER - Votei e votaria de novo.

Mas ele entrou em uma aliança impossível que não deixou que se fizesse o que se esperava.

Lula, para ficar no governo, se aliou a gente de todo jeito.

Conseqüentemente, não se conseguiu uma reforma agrária.

O desmatamento continua, com o gado, o eucalipto e um desrespeito profundo a todas as pessoas da terra: índios, quebradeiras de coco, posseiros, quilombolas, ribeirinhos.

Não há vontade. É claro que Lula fez muito pelos pobres.

O povo come mais.

Há povoados que vivem da Bolsa-Família e da aposentadoria dos velhos.

Mas o que necessário é os movimentos populares e todas as pessoas de boa vontade pressionarem e elegerem um Congresso que um dia queira realizar uma verdadeira reforma agrária.

JC – O preço dos alimentos está aumentando no mundo inteiro.

O governo faz propaganda forte aqui e lá fora do seu biocombustível.

Como o senhor vê essa “obsessão” do governo Lula pelo etanol?

DOM XAVIER – É uma ameaça.

Tal qual como é feita a monocultura, seja a cana, o gado ou o eucalipto, desse jeito, é um problema.

Eles dizem que estão criando gado no sul do Maranhão, do Pará ou do Amazonas e que não estão devastando a Amazônia.

Mas para esse gado chegar ao sul, para onde vai o desmatamento?

Para conseguir álcool há queimadas.

Sem falar que a grande maioria dos trabalhadores escravos estão nas grandes fazendas de cana-de-açúcar.

Retirar o direito de propriedade das fazendas onde se encontra escravos?

Nunca!

A lista negra para a venda de álcool para as distribuidoras?

Nunca!

Por causa do Congresso, não há vontade de se fazer uma reforma agrária.

Os povos tradicionais – índios, quilombolas – não são respeitados. É o caso da Reserva Raposa Serra do Sol (em Roraima).

Já estava decidido, combinado.

Agora, mandam Polícia Federal e tudo mais.

Os ricos pedem e o Supremo Tribunal Federal suspende.

Cá entre nós, sejamos honestos: a Justiça é muito mais rápida para os ricos do que para os pobres.

Liminar concedendo reintegração de posse é rápida.

Agora, quantos quilombolas tiveram suas terras reintegradas?

Há um projeto de lei de um deputado de Mato Grosso que quer retirar da Amazônia Legal os Estados de Tocantins, Maranhão e Mato Grosso.

A bancada ruralista está ganhando.

JC – Em 2006, o presidente colocou os ambientalistas como entrave ao PAC.

O senhor deu uma resposta dura a Lula.

DOM XAVIER – As coisas continuam do mesmo jeito.

Tem que ser duro com o governo Lula, mas há que se ter cuidado.

O povo tem dinheiro, que não tinha antes. É melhor do que nada.

Isso não impede dizer que é melhor Lula do que Geraldo Alckmin.

Mas todos esperávamos mais.

JC – O senhor é contra a transposição do Rio São Francisco?

DOM XAVIER – Sem dúvida nenhuma.

Vai prejudicar muita gente. É um projeto faraônico que não vai solucionar os problemas.

O próprio governo reconhece.

A maioria das águas vai para o agronegócio.

Sou solidário à luta de dom Luiz Cappio.

Mas o episcopado está dividido.

A maioria dos bispos da região – Pernambuco, Paraíba e Ceará, os Estados que serão beneficiados – é a favor.

JC - Houve uma diminuição no número de mortes no campo, mas aumentou o de pessoas expulsas por milícias, segundo o Caderno de Conflitos divulgado na terça-feira pela CPT.

DOM XAVIER – Muitas vezes os “fazendeiros” fazem justiça com as próprias mãos, por meio de jagunços e muitas vezes com a ajuda da Polícia Militar.

Não tenha a menor dúvida que há uma aliança corporativista em torno dessa questão.

Uma aliança de classe: juízes, ruralistas, políticos, eles vêm da mesma classe.

JC – Com relação ao relatório, o que o senhor acha mais importante?

DOM XAVIER – O papel da CPT e o papel da Igreja no sentido da fé.

Este caderno poder ajudar as pessoas de boa vontade a diminuir o abismo entre os ricos e os pobres.

O abismo entre um povo que morre de fome, que é maltratado, que é desprezado, e o que sobra para os outros.

A injustiça fundamental, a falta total de humanidade.

O trabalho escravo no Brasil é um absurdo.

O relatório é um instrumento para que os líderes possam tomar as decisões que têm que ser tomadas.

JC – Há uma onda conservadora dentro da Igreja Católica.

O próprio papa Bento XVI é conservador, como foi João Paulo II.

Esse papel de resistência na Igreja ficou restrito a pessoas como o senhor, dom Pedro Casaldáliga, dom Marcelo Carvalheira e dom Tomás Balduíno?

DOM XAVIER – A grande questão da Igreja é a maneira de ser discípulo do Senhor Jesus Cristo.

Não conseguimos a unidade, há sim essa divisão.

Dentro desta grande igreja, há divisões quanto ao seguimento dos ensinamentos de Jesus.

Para uns, há o reconhecimento de Jesus como salvador e a liturgia.

Para outros, Jesus foi preso e morto por causa da injustiça.

O “amai-vos uns aos outros” de Jesus levava ao que diz a Bíblia: “Estava com fome, me deste de comer.

Estava sem terra, me deste terra”.

Mas é certo que há movimentos dentro da Igreja.

Para alguns, basta o louvor.

Para outros , não há seguimento de Jesus se não houver o combate à injustiça.

Paulo VI disse que o combate pela paz passa pelo combate pela justiça. É uma questão complicada.

JC – A vinda ao Brasil no ano passado de Bento XVI reforçou a Igreja brasileira?

DOM XAVIER – O bispo de Roma traz a unidade.

O fato de vir ao Brasil é um apoio.

Eu diria que a maioria da Igreja me parece mais preocupada com seus problemas internos do que dar a mão às pessoas de boa vontade. É preciso juntar os dois, ter um equilíbrio.