De Veja Para os que supõem serem as pessoas na foto ao lado ruralistas que tiveram suas propriedades usurpadas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, uma informação: o grupo que aparece queimando a bandeira do MST é formado por integrantes do próprio MST.
A cena, ocorrida na semana passada no assentamento Baixio do Boi, em Pernambuco, reflete a desorientação de uma organização que fincou suas estacas numa plataforma de reivindicações sociais e políticas e hoje se debate entre o anacronismo e o embrutecimento de seus métodos.
A foto dos assentados de Pernambuco mostra que o descrédito do MST começa a atingir suas próprias entranhas.
Os lavradores fazem parte de um dos três assentamentos do estado que romperam com o movimento no fim do ano passado.
O motivo não poderia ser mais prático.
Brigam por dinheiro público.
Periodicamente, o governo faz chegar ao MST, via cooperativas ligadas a ele, recursos para a viabilização da reforma agrária.
O dinheiro se destina a financiar, entre outras coisas, cursos para alfabetização, capacitação técnica dos assentados e melhorias na infra-estrutura dos assentamentos.
O que os lavradores dizem é que o MST vem, simplesmente, embolsando esse dinheiro.
Em documento enviado ao governo e assinado por 330 famílias, os assentados de Pernambuco desautorizam o MST a receber, em nome deles, recursos públicos destinados a custear serviços dos quais, de qualquer maneira, afirmam não ser beneficiários.
Se o dinheiro do governo não está sendo repassado aos lavradores, para onde está indo?
A Comissão Parlamentar de Inquérito da Terra, que investiga a aplicação de verbas públicas na reforma agrária, tem uma suspeita.
Diz o senador Alvaro Dias (PSDB-PR), presidente da CPI: “São fortes os indícios de que os recursos estão sendo usados para financiar invasões de terra”.
Desde que os maiores doadores do MST – entidades religiosas da Europa – passaram a apoiar projetos assistenciais no Leste Europeu, a partir dos anos 90, a organização liderada pelo gaúcho João Pedro Stedile vem atravessando dificuldades.
O aperto financeiro, aliado ao esgotamento de uma causa que nasceu apoiada na luta contra os – hoje praticamente inexistentes – latifúndios improdutivos, provocou um esvaziamento do movimento.
Isso fez com que, em acampamentos como o do Pontal do Paranapanema, em São Paulo, o MST passasse a arregimentar “militantes” até nos centros urbanos – muitos deles com tanta afinidade com a terra quanto tem Stedile com a Bolsa de Valores de Nova York, conforme mostrou reportagem publicada por VEJA em dezembro do ano passado.
A conjunção desses fatores – a dificuldade financeira e o esvaziamento de suas fileiras – “empurrou” o movimento para uma direção inédita: os braços do Estado. “O MST tenta sobreviver ao vácuo de uma causa real transformando-se numa organização paraestatal”, diz o cientista político David Fleischer.
Exemplo do estreitamento dessa relação é o volume de recursos que vem recebendo do governo petista.
Como o MST não tem personalidade jurídica, recebe doações e repasses governamentais por meio de cooperativas associadas a ele.
Entre 2003 e 2004, somente duas delas – a Confederação das Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil (Concrab) e a Associação Nacional de Cooperação Agrícola (Anca) – receberam 18,5 milhões de reais do governo federal.
A cifra representa o triplo da média anual repassada ao movimento pela administração anterior.
A CPI tem uma coleção de depoimentos gravados de técnicos agrícolas e integrantes do MST acusando seus dirigentes de desviar os recursos públicos recebidos por meio dessas cooperativas.
Caso esses documentos não fossem suficientes, o governo, ainda assim, teria motivos de sobra para pensar duas vezes antes de despejar dinheiro nelas.
Depois de ter seu sigilo bancário quebrado a pedido da CPI, a Concrab revelou-se dona de uma nebulosíssima situação fiscal.
Desde 1998, a entidade recebeu mais de 7,1 milhões de reais, entre verbas públicas e doações de entidades estrangeiras para o MST.
Curiosamente, no entanto, há cinco anos ela entrega ao Fisco declarações em branco, como se não movimentasse um único real, tivesse balanço patrimonial igual a zero e não possuísse aplicações financeiras – situação bem diferente da realidade, conforme demonstraram as investigações.
Em 2000, durante o governo FHC, uma auditoria realizada pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário vasculhou acampamentos do MST no Brasil inteiro e concluiu que vários dos programas bancados pelo governo não haviam saído do papel: o dinheiro simplesmente evaporou.
Diante dessa situação, o governo ordenou a suspensão de repasses para a Concrab.
Em 2003, com a ascensão do PT ao poder, os cofres da cooperativa voltaram a ser abastecidos com verbas públicas.
Não se tem notícia de que a condição dos assentamentos tenha melhorado na mesma proporção do dinheiro repassado pelo Estado.
Mas o número de invasões mostra uma relação direta com os recursos recebidos .
Quanto à Anca, a CPI foi impedida de analisar seus dados bancários e fiscais graças a uma liminar impetrada pelo deputado petista Luiz Eduardo Greenhalgh.
Candidato derrotado à presidência da Câmara, Greenhalgh é também advogado do MST – e, por motivos não tão insondáveis assim, recusa-se a abrir a contabilidade da entidade para análise da CPI.
A promiscuidade que pauta a relação do MST com setores do governo pode ser observada ainda na impressionante ascensão dos integrantes do movimento aos quadros da administração federal – particularmente ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, o Incra, um organismo governamental criado há 35 anos e que atingiu sob o PT uma invejável autonomia de ação.
De suas 29 superintendências, pelo menos doze são atualmente ocupadas por pessoas indicadas pelos movimentos de luta pela terra ou ex-integrantes de entidades ligadas à questão, como o próprio MST e a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura, a Contag .
O presidente do instituto, Rolf Hackbart, é um histórico militante da causa dos sem-terra.
Em 1983, ele fundou, ao lado de João Pedro Stedile, o Centro de Educação Popular, em Porto Alegre (RS).
A entidade, destinada a capacitar lideranças entre trabalhadores rurais, foi uma das que ajudaram a fundar o MST, no ano seguinte.
Hoje, alçado ao cargo de dirigente máximo do Incra, Hackbart deixa claro que não esqueceu suas raízes.
No fim do ano passado, em discurso para militantes rurais em Brasília, afirmou: “Temos de saber em que ponto vamos nos unificar, porque o outro lado é muito organizado sob a etiqueta do chamado agrobusiness”. “Outro lado”? “Vamos nos unificar”?
Como assim, companheiro Hackbart?
Entre as funções do Incra, previstas em estatuto, estão a elaboração de laudos sobre a produtividade das terras pretendidas para a reforma agrária, a distribuição de recursos como os que estão sendo investigados pela CPI e a intermediação entre sem-terra e proprietários rurais em caso de conflitos agrários.
O fato de a presidência do instituto ser ocupada por alguém claramente posicionado a favor de um dos lados aniquila qualquer possibilidade de que haja decisões imparciais.
Ou alguém tem dúvidas sobre como ficariam as decisões sobre desapropriações de terra caso a presidência do Incra – e mais de um terço das superintendências do instituto – estivesse nas mãos de integrantes da União Democrática Ruralista (UDR), a organização dos proprietários rurais?
O aparelhamento do Incra não tem produzido apenas injustiças, mas violência também, como mostra a situação vivida pela fazenda Monte Cristo, em Camaçari, na Bahia.
Entre os anos de 2000 e 2004, ela foi invadida cinco vezes por sem-terra.
As três últimas invasões ocorreram depois que um laudo do Ibama comprovou que a terra era imprópria para reforma agrária.
Na mais recente delas, ocorrida em agosto do ano passado, quarenta sem-terra chegaram de madrugada a bordo de caminhões.
Derrubaram porteiras e cercas, atiraram contra funcionários (um deles foi acertado no peito) e lançaram até coquetéis molotov sobre o teto da sede, que desabou.
O proprietário da fazenda, o ex-delegado Tadeu Braga, fugiu com a família, mas, no dia seguinte, voltou à propriedade acompanhado de oitenta capangas armados.
O tiroteio que se seguiu só terminou com a chegada da PM, que encerrou o conflito deixando os sem-terra para dentro e os proprietários para fora.
Até hoje, os Braga continuam impedidos pelos sem-terra de entrar na própria fazenda.
O que chama atenção na história, além da violência desmedida de ambos os lados, é a omissão do Incra – que, na Bahia, é presidido por um militante do MST, Marcelino Antônio Martins.
Braga diz que, desde a primeira invasão, apelou ao instituto para que mediasse o conflito.
Seus dirigentes se recusaram a fazê-lo, alegando não ter “poder de polícia”.
Foi o mesmo argumento usado pela direção do Incra no Pará, diante do conflito vivido na fazenda Santa Fé, localizada em Canaã dos Carajás, que culminou com o seqüestro de três funcionários da fazenda no início do ano.
Dois deles ficaram presos durante quatro dias em um barraco improvisado pelos sem-terra, amarrados a uma viga de madeira.
Os proprietários da Santa Fé, os irmãos Célio e Leonardo Carneiro, tentam até hoje reaver a propriedade, ocupada por 300 sem-terra.
O mais recente episódio da série de crimes nos quais o movimento parece estar se especializando deu-se no mês passado, quando um policial militar foi morto e outro, torturado, em um assentamento do MST em Quipapá, em Pernambuco.
Os policiais, do serviço de inteligência da PM, foram rendidos quando investigavam um casal – supostamente integrante do movimento – suspeito de participar de uma quadrilha especializada em roubo de cargas na região.
Um dos policiais foi libertado depois de ficar um dia preso em um barraco, onde afirma ter sido amarrado e espancado.
O outro foi morto a tiros.
Segundo a PM, também apresentava sinais de tortura.
Em sua defesa, o movimento saiu-se com um argumento moralmente inaceitável: não sabia que se tratava de policiais.
Os PMs estavam em carros normais e trajes civis.
Mas ainda assim o argumento não se sustenta fora de um sistema em que a barbárie impera.
Não se sustenta também por razões lógicas: os documentos de identificação dos policiais foram tirados deles e queimados pelos sem-terra.
O MST se recusa a ter existência formal – situação muito conveniente para uma entidade que, além de não estar interessada em ter responsabilidades fiscais, seqüestra, vandaliza, tortura e mata. É legítimo pensar que, em havendo condições, seus dirigentes há muito já teriam transformado o movimento em uma versão brasileira das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, as Farc – o grupo terrorista colombiano que, escondido sob o manto ideológico, e com a ajuda do narcotráfico, extorque camponeses e mata civis.
Ao agir à semelhança de bandidos, o MST se afasta cada vez mais do rótulo de movimento social para se aproximar de outro: o de uma organização criminosa.
Com a complacência do Estado – e o dinheiro do contribuinte.