Por Raul Jungmann* Mais de um quarto dos cariocas admite e aceita a tortura como método de investigação, diz O Globo de domingo.

Leio, e isso não me sai da cabeça.

Não que seja, digamos, uma surpresa.

Não, desgraçadamente não é.

Mas é que coisas intuídas muitas vezes guardam sua dose de impacto, de choque, quando reveladas ou se manifestam.

O que me fez lembrar outro choque similar, dois anos atrás, quando do referendo do desarmamento.

Eu tinha ido participar de um debate, dentre tantos pais afora, no Rotary de Casa Forte.

Presidia a mesa um velho amigo, o jornalista Carlos Garcia.

Me imaginei num ambiente propício para nossa mensagem pela paz e contra as armas.

Mas, para minha surpresa, notei, enquanto falava, um casal simpático, cabelos brancos os dois, já idosos, seguindo o que eu dizia com indisfarçável desconforto, raiva mesmo.

Acho até que ela rangia os dentes, ouvindo-me defender a proibição do comércio de armas e munições.

A princípio, não conseguia entender aquele sentimento, que me deixava perplexo e abatido.

Mas sua repetição, em caras, gestos e olhares diversos, como diversas eram as platéias, me levaram a uma reflexão – até como forma de minimizar o desconforto que me causava.

Entendi que aquelas reações partiam de pessoas que se sentiam vulneráveis perante uma violência cotidiana, que ameaçava ou atingia entes queridos, gerando dor e insegurança crescentes.

E que não tinham, aquelas pessoas, da parte do Estado, do aparato de segurança, uma reposta minimamente compatível com o seu (quase) desespero.

Nesse ambiente, claro, a proposta de desarmamento soava como uma ameaça, dado que unilateral, uma vez que poder público não conseguia desarmar os bandidos.

Então, como os cidadãos abrirem mão de sua autodefesa (ainda que essa não passe, na maioria das vezes, de pouco mais que uma ilusão – aliás, de funestos resultados quando posta em prática).

A verdade é que o medo e a insegurança continuados corroem e levam a destruição da sociabilidade que dá suporte à esfera pública.

Ameaçam, portanto, essa maravilhosa criação humana, que são as cidades: “engenhos” coletivos, que permitem que vivamos e cooperemos uns com os outros de forma civilizada, compartilhando espaços comuns.

Há muito que o medo e a insegurança se alastram no imaginário do Recife e, concretamente, invadem nossas vidas, relações, cultura e espaços, a exemplo do que acontece no Rio de Janeiro, pois somos a capital campeã da violência.

Quanto tempo mais resistiremos num ambiente em que o outro, de fonte de cooperação e afeto, torna-se uma ameaça?

Quanto tempo mais esse medo difuso, mas real e onipresente, nos levará, de regressão em regressão, a advogarmos – não a justiça; não a igualdade de todos perante a lei – mas a pena de Talião: olho por olho, dente por dente?

E, por fim, quanto tempo ainda nos resta antes de revogarmos o dito bíblico “amarás ao outro como a ti próprio”?

E, iguais em barbárie aos que nos ferem, invocarmos a tortura como método legítimo de combate contra quem nos ameaça e não mais como a negação mesma da nossa humanidade? *Deputado federal e pré-candidato a prefeito do Recife pelo PPS, escreve no Blog às terças dentro da série “Recife 2008.

Debate com os Prefeituráveis”.