Por Rodrigo Manzano O primeiro livro que ganhei, na infância, foi um dicionário.

Era o Dicionário Urupês da Língua Portuguesa, título que até tem algumas virtudes, mas nunca foi elevado ao rol dos grandes.

Era um dicionário, digamos, outsider.

Quando me entregou, numa sacola de papel, minha mãe me disse que era possível encontrar ali “todas as palavras da língua portuguesa”, evidentemente uma maneira muito generosa de me apresentar àquele livro tão grande e valorizar o presente despretensioso, oferecido sem nenhuma razão aparente.

O dicionário me fascinou como se fosse um objeto transcendente, um supermercado de palavras, um depositório metafísico.

Travei com ele uma disputa, um desafio: lembrar-me de uma, apenas uma, palavra que não constasse no dicionário.

Eu tinha 7 anos e meu vocabulário, pode-se imaginar, era muito limitado.

Perdi a batalha contra o dicionário, mas melhorei bastante meu repertório e aprendi, desde muito cedo, que as palavras são seres vivos e que não se pode brincar com elas.

Os jornalistas têm assistido, horrorizados, ao desdobramento de uma série de processos que fiéis da Igreja Universal do Reino de Deus vêm movendo contra a jornalista Elvira Lobato, da Folha de S.Paulo, e contra outros jornais, como A Tarde, da Bahia, e Extra e O Globo, do Rio de Janeiro.

No caso do último, porque a Igreja considerou-se ofendida ao ser classificada como “seita”.

A constrangedora reportagem transmitida pela Rede Record no domingo à noite ressaltava que muitos fiéis sentiram-se ultrajados pelo vocábulo.

Para justificar tanta implicância contra uma simples palavrinha, recorreram ao Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, que define “seita” como “partido, bando, facção”.

Só que, aparentemente de maneira proposital, esqueceram-se de informar que essa é a 6a definição, ou seja, antes dela o Houaiss traz outras cinco, inclusive a “grupo de indivíduos partidários de uma mesma causa”, bastante adequada à congregação.

Me espanta é que na tradição protestante, em especial nas novas denominações, é muito freqüente que eles se refiram às outras religiões como seitas.

E ninguém, até hoje, estrebuchou juridicamente e com tantos fogos de artifício.

Além de ter sido protestante na adolescência (no sentido religioso, mesmo, não do ponto de vista comportamental), tenho o péssimo hábito de adorar os programas de pastores na televisão (que descobri, há pouco, ser compartilhado com o genial Millôr Fernandes, o que me permite assumir este vício publicamente).

Pelo vocabulário da maioria dos pastores da televisão, não me parece que eles tenham tanta intimidade com dicionários.

O súbito interesse pelo léxico me fez perguntar, intimamente: “Qual será o pai-dos-burros da Universal” Está na Palavra: “E, havendo aberto o quinto selo, vi debaixo do altar as almas dos que foram mortos por amor da palavra de Deus e por amor do testemunho que deram. / E clamavam com grande voz, dizendo: Até quando, ó verdadeiro e santo Dominador, não julgas e vingas o nosso sangue dos que habitam sobre a terra?” (Apocalipse 6 : 9, 10).

O que ninguém parece entender é que a série de processos contra jornais e jornalistas movidos por fiéis da IURD é, sobretudo, um projeto religioso.

Muito se discute sobre as relações entre poder político, econômico e eclesiástico potencializados pelos meios de comunicação ligados à Igreja Universal.

Mas, ao se sentirem ultrajados e parecerem vítimas de um complô e de preconceitos da mídia, os líderes da Igreja Universal forjam uma profecia lançada sobre o povo cristão que, no final dos tempos seria perseguido, sinalizando a volta do Messias.

Nada mais eficiente para legitimar a própria existência e marcar em si mesmo o sinal da escolha de Deus. É uma maneira violenta de escrever, à sua maneira, a história de seu próprio futuro glorioso.

Por enquanto.

Nota: Antes que recaia sobre mim a fúria dos santos, aviso: o hífen em “pai-dos-burros” transforma a expressão em sinônimo de “dicionário”, como se vê no título.

Sem hífen, sabemos bem o que significa.

PS: Rodrigo Manzano é Diretor Editorial da IMPRENSA e professor de Jornalismo na graduação e pós-graduação do UniFIAMFAAM, em São Paulo