Da Veja No mundo real, um cartão de crédito é um instrumento que impõe uma série de regras ao seu portador.
Em primeiro lugar, é preciso passar por uma análise da operadora, que definirá o limite a ser autorizado para as despesas.
Quem tenta gastar mais do que pode tem o cartão bloqueado, e quem atrasa o pagamento é punido com juros de até 14% ao mês.
No mundo real, um cartão também serve para sacar dinheiro vivo em caixas eletrônicos, mas isso sai caro, já que o banco cobra até 10 reais de taxa fixa por saque, mais os juros até o dia do vencimento da fatura.
Há outro mundo, no entanto, habitado por uma casta de funcionários públicos federais, onde tudo é infinitamente mais fácil.
Nele, qualquer um pode ter um cartão corporativo, desde que conte com a simpatia do chefe.
Não há limite para gastos nem para saques em espécie (por lei, o teto das despesas deveria ser definido em cada repartição pública, mas uma série de truques contábeis permite driblá-lo sem maiores problemas).
Seus portadores não precisam se preocupar com as taxas que serão cobradas pelos bancos ou pela operadora, já que o dinheiro não é deles.
Ah, sim, também não é preciso esquentar a cabeça com o pagamento da fatura no fim do mês – ele fica a cargo do Tesouro Nacional.
Quanto às eventuais malversações ou “equívocos” cometidos no uso dos cartões, isso é o de menos.
A fiscalização dos gastos, como se provou nas últimas semanas, é conduzida com o rigor que já se tornou uma característica do atual governo.
O mundo deles, convenhamos, é muito melhor do que o nosso – o real, construído com estudo e trabalho.
Os contribuintes começaram a informar-se do funcionamento desse mundo encantado dos burocratas federais há algumas semanas.
Por lei, os cartões de crédito corporativos, adotados pelo governo em 2001, para conferir mais transparência aos gastos dos funcionários públicos, servem para que seus portadores possam fazer face a despesas “esporádicas e emergenciais”.
Mas está evidente que, na prática, eles se tornaram passaportes para uma verdadeira esbórnia com o dinheiro público.
A primeira descoberta foi a de que alguns ministros se habituaram a usar o cartão a toda hora e da maneira que lhes dava na telha: para comer um lanchinho, fazer compras em free shop, hospedar-se com a família em hotéis de luxo e jantar em restaurantes caros (churrascarias parecem ter a predileção da maioria).
Em seguida, soube-se que a bandalha envolvia milhares de funcionários, incluindo os que servem à Presidência da República.
Na semana passada, VEJA mostrou que até as despensas e adegas do Palácio da Alvorada e da Granja do Torto – residências oficiais da família Lula – vêm sendo abastecidas por meio de cartões corporativos.
Um dos assessores mais próximos de Lula, José Henrique de Souza, usou o cartão em açougues, supermercados, padarias, peixarias e lojas de bebidas.
O caso chama atenção porque manda a lei que os fornecedores da Presidência devem ser escolhidos por licitação – e não por acaso, ou por escolha pessoal de um assessor.
Ao longo do ano passado, Souza gastou 115.000 reais com despesas aparentemente bem pouco emergenciais.
No mundo real, trata-se de um bom dinheiro, suficiente para comprar um apartamento de dois quartos em São Paulo.
No mundo encantado, porém, é uma mixaria.
Para se ter uma idéia, dez colegas de Souza no Planalto, responsáveis por dar assistência a Lula e sua família e acompanhá-los em viagens oficiais, gastaram nada menos que 3,7 milhões de reais em 2007.
No que eles torraram a mufunfa? É segredo de estado, “questão de segurança”, segundo disse a ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff.
O detalhamento dos gastos do despenseiro Souza, por exemplo, só veio à tona graças a um cochilo do governo.
O grupo dos dez não conhece limites.
O maior gastador do gabinete presidencial no ano passado foi João Domingos da Silva Neto, com 585.900 reais.
Desde que o PT chegou ao poder, em 2003, ele já fez despesas de 1,3 milhão de reais no cartão oficial – desse total, 181.500 reais foram sacados em dinheiro vivo.
O campeão de gastos no acumulado da gestão petista, no entanto, é Clever Pereira Fialho.
Suas faturas, somadas, chegam a 2,4 milhões de reais, dos quais 263.500 reais foram sacados em espécie.
Juntos, os dez maiores gastões da secretaria da Presidência foram responsáveis por despesas de 11,6 milhões de reais desde 2003.
Sem licitação, sem controle, sem medo de ser felizes.
Tudo sob o manto da “questão de segurança”, uma explicação que não resiste à luz da legalidade. “Se a Presidência da República tem gastos, esses gastos devem ser revelados.
Não há preceito na Constituição Federal que, interpretado e aplicado, direcione a esse sigilo quanto aos gastos do poder público”, afirmou o ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal.
A recusa do governo em detalhar os gastos dos assessores mais próximos do presidente Lula e de sua família não contribui em nada para desanuviar as suspeitas que se acumulam sobre os 11.510 cartões corporativos atualmente nas mãos de 7.145 funcionários públicos do governo federal (alguns têm mais de um). É justificável que os gastos realizados estritamente com a segurança presidencial sejam mantidos em sigilo.
Mas há uma grande diferença entre gastos sigilosos e gastos clandestinos.
No modelo atual, não há nenhum controle externo sobre boa parte das despesas da Presidência.
Quem faz esse trabalho é um órgão ligado ao gabinete presidencial – ou seja, é a clássica história da raposa tomando conta do galinheiro.
Uma das poucas tentativas de fiscalização do uso do cartão corporativo data de 2003, quando o deputado Carlos Sampaio, do PSDB paulista, pediu à Procuradoria da República esclarecimentos sobre os gastos dos assessores mais próximos de Lula.
Na ocasião, o Tribunal de Contas da União iniciou uma nunca concluída auditoria sobre o tema.
Os parquíssimos resultados divulgados até agora revelam, no entanto, que, se algum dia o tribunal decidir empenhar-se na análise do tema, terá muito trabalho.
Sabe-se, por exemplo, que, em 2003, logo no início do governo, assessores palacianos transformaram em uma grande festa uma viagem de Lula ao interior de São Paulo, pagando diárias a pessoas que nem sequer estavam na comitiva oficial e superfaturando o pagamento de hospedagens.
Uma análise superficial de um pacote de notas fiscais emitidas em nome da Presidência da República mostra a existência de fraudes primárias.
A de número 7.987, por exemplo, emitida em 2004 pela empresa Belini Pães e Gastronomia, teve seu valor rasurado de R$ 9,44 para R$ 99,44, como puderam notar os auditores do TCU. “O que mais preocupa é que essa nota foi encontrada em um trabalho de fiscalização por amostragem, que analisou apenas 2% do total de notas”, diz o deputado Carlos Sampaio (PSDB-SP). “É impossível saber quantas fraudes desse tipo foram feitas”, conclui.
Até o momento, os cartões corporativos do governo ora foram usados para desviar dinheiro público, ora para pagar gastos que não deveriam ser bancados por esse sistema.
No caso das despesas feitas com cartão oficial pelos seguranças dos filhos do presidente Lula, nada indica que as despesas declaradas não ocorreram.
A única filha do presidente, Lurian Cordeiro da Silva, mora com o marido e dois filhos em um condomínio em Florianópolis.
Para protegê-la, o governo alugou uma casa na cidade.
O imóvel funciona como centro de operações de uma equipe formada por meia dúzia de agentes que se revezam na tarefa de proteger Lurian e sua família.
Com essa finalidade, entre abril e dezembro do ano passado, João Roberto Fernandes Júnior, servidor lotado no Gabinete de Segurança Institucional da Presidência, gastou 55.000 reais com um cartão corporativo do governo.
A maior parte das despesas diz respeito a pagamentos em concessionárias de automóveis – referentes à manutenção da frota que serve aos seguranças de Lurian –, casas de ferragens e lojas de aparelhos eletrônicos de segurança, como câmeras e alarmes.
Em uma das lojas, a Dominik, foram compradas peças de ferro usadas na construção de alvos fixos para a prática de tiro.
O cartão também bancou a instalação de grades na casa dos seguranças, lanches em padarias e material de escritório.
Ao contrário do que ocorreu com os ministros de Lula, os funcionários a serviço de Lurian não gastaram dinheiro com diversão particular.
O dado espantoso é que um segurança tenha autonomia para ordenar despesas dessa monta – o equivalente a um bom carro zero-quilômetro.
Faz parte da boa administração do dinheiro público o critério na escolha de fornecedores e a cotação de preços, condutas normalmente observadas por funcionários especializados em compras – mas não necessariamente por um segurança.
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