Por Gustavo Krause A tradição aconselha: ano-novo, vida nova.
O ritual, de dimensão universal, chega a ser mágico: relógios e calendários medem um tempo inventado pelo homem e torna descontínuo o verdadeiro tempo cósmico que segue imensurável, imutável e eterno.
A palavra de ordem na passagem do ano é olhar para frente, renovando promessas abandonadas, se possível, com menos gordura e menos nicotina.
Vou ceder à tentação de olhar para trás (e o assunto, mil perdões, é política): um retorno ao século XIX com a esperança de que o exemplo de um grande homem sirva de lição e ilumine o futuro da nossa vida pública.
Trata-se do Imperador D.
Pedro II.
Ao aproveitar dias festivos e preguiçosos, não só cometi o pecado da gula natalina, como devorei quatro importantes livros da recente historiografia brasileira: 1808 (Laurentino Gomes, Planeta); Joaquim Nabuco (Ângela Alonso, Companhia das Letras); A independência Brasileira: novas dimensões (organizado por Jurandir Malerba, FGV); D.
Pedro II (José Murilo de Carvalho, Companhia das Letras).
Ao final da biografia do Imperador Pedro II cujo conhecimento me chegava fragmentado pela leitura dos episódios registrados no segundo mais longo reinado da história (49 anos, superado pelo da Rainha Vitória, 64 anos), a conclusão é inevitável: o Brasil é um país singularíssimo, curioso até, porque marcado por grandes contradições.
A primeira: D.
Pedro II foi o mais democrático, o mais liberal, o mais tolerante governante deste país, apesar de ser um produto dinástico da agonizante monarquia absolutista, cercado de republiquetas e pelos caudilhos de sempre.
A segunda: D.
Pedro II, embora monarca, foi o mais republicano dos governantes brasileiros.
Nele, estavam presentes as virtudes clássicas do ser republicano, preconizadas pelo romano Cícero e pelo francês Montesquieu, bem como a consciência de que a república sucederia nossa canhestra monarquia constitucional.
O Imperador exerceu o poder com insuperável espírito público, respeito às leis e às instituições, firmes compromissos nacionais e inigualável austeridade no trato do patrimônio público.
Vamos à comprovação da vocação democrática, espírito liberal e comportamento tolerante, traços da primeira contradição. “Nossa principal necessidade política é a liberdade de eleição; sem esta e a de imprensa não há sistema constitucional na realidade […]A tribuna e a imprensa são os melhores informantes do monarca […]Menor centralização administrativa também é urgente, assim como melhor divisão das rendas geral, provincial e municipal, convindo vigorar este último elemento”.
Com efeito, este credo político está registrado nas “Falas do Trono”, nas 5500 páginas do diário, na caudalosa correspondência e nos “Conselhos à Regente”, em 3 de maio de 1871, onde escreveu: “Sem bastante educação popular não haverá eleições como todos devemos querer [..]É a principal necessidade do povo brasileiro […]A instrução primária deve ser obrigatória, e generalizada por todos os meios […]Entendo que se deve permitir toda liberdade nestas manifestações […]Os ataques ao imperador […]não devem ser considerados pessoais, mas apenas manejo ou desabafo partidário”.
Sua relação com a imprensa foi de tolerância inexcedível.
Não por tibieza e, menos ainda, por justificada indignação.
Resultava de convicção democrática quanto ao papel da imprensa.
Imprensa que foi cruel com o Imperador ao satirizar a silhueta física, chamando-o de Rei Caju; ao ridicularizar a tolerância, apelidando-o de Pedro Banana; ao flagrá-lo em cochilos, insinuando demência precoce o que era sintoma do severo diabetes.
Mesmo assim, impôs limites ao Duque de Caxias ao ordenar: “A imprensa se combate com a imprensa”.
Vamos à comprovação do espírito público, austeridade e zelo com o patrimônio público, traços da segunda contradição. “A política não é para mim senão o duro cumprimento do dever”, disse em carta ao Conde de Gobineau.
Anotação expressiva está no caderno IX do diário ao se referir à politicagem: “A falta de zelo, a falta de sentimento do dever é o nosso primeiro defeito moral”.
Lutou ingloriamente contra o velho clientelismo, defendendo o mérito como condição de acesso ao serviço público.
Foi contundente com a burocracia e a corrupção ao afirmar: “Tudo o que não é rotina encontra mil tropeços entre nós […]A primeira necessidade da magistratura é a responsabilidade eficaz e que enquanto alguns magistrados não forem para a cadeia, como, por exemplo, certos prevaricadores muito conhecidos do Supremo Tribunal de Justiça, não se conseguiria este fim”.
Suas viagens foram todas custeadas com empréstimos pessoais; a dotação orçamentária da corte foi a mesma do primeiro ao último dia do reinado; os gastos reduzidos davam à corte um aspecto monástico o que permitiu ao Imperador amparar os pobres de São Cristóvão e financiar bolsistas para estudar no exterior, amante das letras, ciências, artes e inovações tecnológicas que foi.
Chegou a devolver dinheiro ao Tesouro, destino que, mais tarde, daria aos cinco mil contos de pensão para viver no exílio, concedida pela consciência culpada da República.
Viveu e morreu modestamente a expensas de empréstimo obtido junto ao banqueiro Visconde de Figueiredo.
Pacifista radical, D.
Pedro não hesitou em assumir, na linha de frente, o combate necessário ao caudilho Solano López, espécie de Chávez avant la lettre.
Infelizmente, o espaço não comporta a lista completa dos exemplos dados pelo monarca.
O que se pode dizer em relação aos seus sucessores é o seguinte: nunca depois, na história deste país, o Brasil precisou tanto de bons exemplos vindos de cima.