Por Marcelo O.

Dantas EM MEADOS do século 17, ainda sob o impacto da expulsão dos sefarditas da península ibérica, muitos judeus passaram a ansiar pela vinda de um messias que pusesse termo aos sofrimentos do exílio, restaurando a autonomia política do povo de Israel.

Movido por essa esperança, um obscuro estudioso da cabala, Sabbatai Zevi, deu início a sua pregação milenarista.

Homem de temperamento inconstante, Sabbatai logo se indispôs com os rabinos de Smyrna (atual Turquia), que o expulsaram da cidade.

Após 17 anos de insucesso, o estranho místico estava prestes a desistir de tudo.

Decidiu então ir a Jerusalém consultar-se com Nathan de Gaza, um jovem profeta.

Foi quando teve revelada a natureza divina de sua missão.

Ele (Sabbatai) era o tão aguardado messias.

A boa-nova não tardou a empolgar a diáspora judaica.

Iniciava-se o ano de 1666, data prevista por alguns para o confronto do redentor (1) com a besta (666).

Acompanhado por cortejo digno de um príncipe, o eleito de Iahweh rumou a Istambul, certo de que imporia sua autoridade sobre o sultão.

Deu-se o oposto.

Feito prisioneiro, Sabbatai esconjurou o martírio, convertendo-se ao islã.

Seria o fim de qualquer empreitada sensata, não operasse o messianismo na freqüência do mito.

Em lugar de causar perplexidade, a apostasia do messias passou a ser vista por seus adeptos como um “pecado santo”.

Segundo Abraham Miguel Cardozo, um dos mais destacados teólogos do movimento, o ato paradoxal de Sabbatai Zevi fora um sacrifício voluntário.

Por meio desse mergulho no abismo, ele chegaria ao coração do mal e ali o liqüidaria por dentro, libertando as últimas partículas de luz aprisionadas nas esferas da impureza.

Entre os adeptos do sabbatianismo, duas grandes correntes se formaram.

Os moderados acreditavam que somente a alma do messias seria capaz de resistir a um contato tão estreito com as forças do mal.

Enquanto não ocorresse o retorno glorioso do ungido à verdadeira fé, o povo de Israel deveria observar os preceitos morais da ortodoxia rabínica, malgrado sua natureza imperfeita e transitória.

Em contraste, a ala radical passou a defender uma modalidade exacerbada de antinomismo: todos os adeptos deveriam imitar o exemplo do messias e descer às profundezas da escuridão.

Segundo o sinistro Jacob Frank, somente por meio do pecado seria possível chegar à transcendência: o advento da era messiânica reclamava a superação definitiva da ética mosaica, fundada sobre a dicotomia opressiva dos conceitos de certo e errado, bem e mal.

Semelhante heresia nunca chegou a desaparecer por completo.

Suprimidos os últimos remanescentes do movimento, a idéia sabbatiana continuou a existir, em estado latente, no mundo das eternas possibilidades.

Até que veio ressurgir, com roupagem secular, no Brasil do mensalão.

Não é segredo que o PT se estruturou como agremiação messiânica.

Durante mais de duas décadas, seus militantes se portaram como adeptos de uma seita guerreira destinada a libertar o povo brasileiro de cinco séculos de opressão.

Eles eram os puros, os eleitos, os apóstolos do Partido Messias.

Mais que uma fantasia revolucionária, sua mensagem anunciava ao país a aproximação do tempo do milagre, em que o mal seria vencido e os bons enfim reinariam.

A inconsistência dessa fábula foi posta em xeque com a chegada do partido ao poder e o abandono do discurso ético que pautara sua ascensão.

Curiosamente, em lugar de aceitar o desafio da realidade como estímulo ao pensamento crítico, boa parte da militância optou pelo caminho esquivo da alienação mística.

Importava, acima de tudo, preservar a fé na santidade do messias.

O credo petista converteu-se, assim, em um neosabbatianismo radical, alimentado por uma intelectualidade delirante, especializada em justificar o injustificável.

Marilena Chaui revelou ao mundo a teleologia da corrupção; Paulo Betti defendeu o caráter soteriológico do pecado; e o solerte Wagner Tiso abriu mão de seu coração de estudante para encavalar o espírito pragmático de Jacob Frank.

O pacto com o fisiologismo e a conversão à ortodoxia econômica passaram a ser tratados como pecados santos -alianças temporárias do messias apóstata com o dragão burguês destinadas a acelerar o tempo histórico e facilitar o advento da era escatológica.

Nestes tempos messiânicos, até o maná foi reinventado. “Eles estão chegando!”, anuncia-nos o senador Mercadante, enquanto nos bastidores salva o mandato do colega mercador.

Hoje, os petistas aceitam tudo.

Menos que alguém ouse pensar por conta própria.

PS: MARCELO OTÁVIO DANTAS, 43, formado em ciências econômicas pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), escritor, roteirista e diplomata de carreira, é chefe da Divisão de Assuntos Multilaterais Culturais do Ministério das Relações Exteriores e autor “Podecrer!”.