Por Dom Luiz F.
Cappio No jornal a Tarde, de Salvador, em 08 de 12 de 2007 É verdade que sem boa causa não há mártir.
E boas causas, há muitas hoje: as da justiça, da paz, da democracia, da soberania alimentar, da ecologia – causas do Reino de Deus.
Por outro lado, proliferam causas obscuras, de que não faltam defensores.
Em nome da seca (fenômeno natural) e da sede no Nordeste (fenômeno social), vendese a idéia (marketing) da transposição como uma obra redentora.
O que está por trás, o jogo de interesses, os mecanismos de mercado na gestão, isso se omite, para não quebrar o encanto, despertar resistências.
A causa a que me dedico com afinco há 33 anos é muito maior do que a compreensão do ministro.
Não cabe no reducionismo maniqueísta de ser contra a transposição e a favor da revitalização do rio. É por outra relação com a natureza, com as pessoas e com o Criador, a prioridade da vida acima do lucro, as instituições de poder a serviço do bem comum.
No caso, o desenvolvimento do semiárido, apropriado às suas diversidades geo e socioambientais, voltado para o período chuvoso não para a seca, com prioridade no povo, não nas elites.
Não espero que o ministro entenda isso.
E quem muda de posição tão rapidamente merece desconfiança.
Que democracia é essa que poucos prevalecem contra a maioria, manipulando a sede; que se impõe ditatorialmente, à base de ilegalidades e audiências públicas pró-forma, sem considerar críticas e alternativas; que usa o Exército, contristando soldados a trabalhos extrafunções, intimidando movimentos sociais?
Mas democracia substantiva é algo incompreensível para o ministro.
Como também a legitimidade de um cidadão dispor de si em favor de muitos, em face de uma imposição autocrática.
E mais ainda, a tradição cristã do martírio em defesa da fé e da vida plena.
O maior impacto da transposição sobre o rio não é a porção de água dele a tirar. É a perpetuação do modelo que vê nele apenas “recursos hídricos” e negócios, num acúmulo de usos econômicos seguidos e irrestritos que o exaure e o exterminará.
Antes de tudo, o rio é complexo interdependente de vidas; para o povo, é pai e mãe.
Coisa que o ministro também não entende.
Por que falar apenas dos 26 m³/s, a vazão constante a ser transposta?
E as vazões máximas de 127 m³/s e maiores quando transporem também do Rio Tocantins?
Curioso: a vazão mínima equivale à da válvula difusora do Açude Orós, no Ceará, e a máxima é igual à evaporação do Açude Castanhão, no mesmo Estado, conforme o grande construtor de açudes do Dnocs, Manoel Bomfim Ribeiro.
Segundo ele, não há mais onde construir açudes, precisamos agora usar suas águas em sistemas eficazes e democráticos.
O ministro diz que as 530 obras do Atlas Nordeste da Agência Nacional de Águas são complementares à transposição.
Mas a transposição não era para a sede de 12 milhões?
Como necessita daqueles complementos?
As cidades com mais de 5 mil habitantes, não contempladas no Atlas, podem ser atendidas pelos sistemas de adutoras com água dos açudes.
Um exemplo: o professor José Patrocínio, de Campina Grande, defende que uma gestão mais competente do sistema Coremas/ Mãe d’Água resolve o déficit hídrico daquela cidade.
E conta que lá o desperdício é de 60%, 20% a mais que a média nacional!
Aproveitar a “gota d’água disponível”, ensina a autoridade de um Aldo Rebouças, da USP.
Nosso projeto é muito maior.
Queremos água para 44 milhões, não só para 12.
Para nove Estados, não apenas quatro.
Para 1.356 municípios, não apenas 397.
Tudo pela metade do preço.
O Atlas e as iniciativas da ASA (sociedade civil) são muito mais abrangentes e têm finalidade no abastecimento humano.
A transposição é econômica, neoliberal.
Essa diferença, o ministro “ignora”.
Quanto aos destinos da transposição, Estudos de Impacto, não o ministro, esclarecem: 70% para irrigação, 26% uso industrial, 4% para população difusa.
Por que não se assume e se discute se esse é o caminho do desenvolvimento do semia-árido?
A recomposição de mata ciliar na Barra é importante, mas insuficiente.
E as áreas de recarga, e os cerrados e caatingas devastados?
Fazer obras onde moro não esconde as intenções “marketeiras”…
E as milionárias “cartas de intenção” assinadas com os prefeitos ribeirinhos, a quantas andam?
Sujeitos políticos somos todos, indivíduos e instituições, por atuação consciente ou omissa.
A Igreja sempre foi esse ator importante no Brasil, não incomodava quando do lado de poderosos convenientemente “cristãos”.
Quanto a mim, só busco fidelidade à minha missão de bispo franciscano, ao lado do povo do rio e do semiárido brasileiro.
Causa que vale o martírio se for preciso e da graça de Deus.
PS: se quer se matar, pode ir adiante.
Agora, pelo menos em meu nome não!