Por Nelson Ascher, colunista da Folha de São Paulo Logo após um encontro dos líderes do Pacto de Varsóvia com os americanos, Brezhnev diz a Kosigin: “Você viu só o relógio que Nixon deu a Ceausescu?”.

Ao que Kosigin reponde: “Não.

Deixe-me vê-lo”.

Há uma legião de piadas satirizando a paixão soviética por esses pequenos mecanismos portáteis e todas se enraízam na realidade, pois a primeira expressão russa que os europeus centro-orientais aprendiam assim que, na Segunda Guerra, o Exército Vermelho chegava a seus países era “davai tchassi” (passe o relógio) ou, às vezes, sua forma simplificada, que consistia no soldado dizendo “tique-taque” enquanto apontava uma Kalashnikov para tornar mais convincente o pedido.

Os soldados vermelhos eram tão adeptos dos relógios que, segundo uma versão, a famosa foto em que dois deles fincam a bandeira soviética no alto do Reichstag em Berlim teve de ser retocada, uma vez que cada qual dos bravos camaradas levava dois ou três relógios em cada braço.

Não há prova mais conclusiva de que o roubo de relógios se deve ao capitalismo: é somente este que consegue produzi-los.

E, como a história nos ensina, passar a mão neles já era, meio século atrás, uma atividade eminentemente socialista ou comunista.

Embora muitos tenham criticado a aparente ociosidade da discussão, o que emergiu durante nosso recente “rock around the watch” é que não falta gente que vê o roubo, mesmo quando este é à mão armada e põe vidas em risco, como uma maneira de redistribuir a renda.

Trata-se de uma constatação importante, pois, caso a lógica ainda não tenha sido abolida por decreto presidencial (ela o será no terceiro mandato), se A = B, então B = A, o que quer dizer que, se roubo é justiça social, então aquilo que chamam de justiça social não passa de roubo, uma confissão nem sempre fácil de arrancar a seus defensores.

E quem são estes?

Se as seções de cartas de jornais e revistas forem representativas da população nacional, é difícil ver por que se reclama tanto da falta de escolaridade dos brasileiros, pois a maioria destes parece ter mestrado e doutoramento, geralmente em filosofia.

Minha impressão é a de que há mais filósofos por metro quadrado no Brasil do que na Atenas de Péricles.

Mas, se os filósofos irados representam apenas a intelectualidade e os professores, uma coisa é certa: eles estão lançando mão do roubo de relógios para conseguir mais empregos e sua proposta de solução é a de, impondo-lhes o pensamento meio esquerdista meio hippie que vigora nas instituições de ensino, reeducar os bandidos de modo a convertê-los em revolucionários.

O que é, devem pensar eles, furtar um bem de consumo quando se pode confiscar tudo que é bem de capital?

Esse pessoal sugere também uma equivalência segundo a qual a “bolsa pela vida” seria uma troca equilibrada.

De forma paralela, poderíamos dizer que, depois de uma relação sexual forçada, o estuprador ficar com o orgasmo e a estuprada com a vida é igualmente justo.

Nem se trata de um raciocínio novo no país, já que estamos habituados a ouvir das autoridades constituídas coisas como “se precisar levar o relógio, leva, mas não mata” ou “passa o relógio, relaxa e goza”.

No entanto, pensar o contrário, ou seja, achar que a lei existe para ser aplicada e, mais, que seus principais beneficiários são os elementos mais fracos da sociedade, aqueles que nem dispõem de segurança privada nem têm sua própria gangue armada, tornou-se reacionário e, pior, simplista.

Ora, simplista e reacionário é quem acredita que o binômio pobreza/opressão explica tudo.

No entanto, é fácil ver, seja entre bandidos, seja entre terroristas políticos ou teocráticos, que a maior frustração e, conseqüentemente, a maior raiva e violência decorrem menos de alguém ser de fato oprimido do que de não poder oprimir.

Tudo o que vai acima, como já apontei em outras colunas, é resultado da má consciência da classe média, uma má consciência devidamente manipulada por pessoas que não têm consciência nenhuma.

Como o proletariado da teoria marxista, a classe média se crê uni- versal: todo mundo é, no fundo, seu membro e compartilha de suas aspirações.

Eternamente fixada em diferenças microscópicas de ren- da e status, ela reduz tudo à economia e ignora tanto a natureza humana como o caráter não raro predatório desta.

Bom, por hoje é só e, pensando bem, nunca antes neste país tão impontual um relógio de pulso deu tanto pano para mangas.