Na visita que fez ao Recife, o roteirista do filme Tropa de Elite disse que achou a cobertura de Veja sobre o filme reacionária, mas observou ao Blog de Jamildo que concordava com a análise feita pelo blogueiro Reinaldo Azevedo.
Por falta de tempo, não havia feito ainda um resumo do texto, caudaloso, mas importante para entender o quanto há de sociologia na discussão do polêmico filme.
Veja aqui um resumo: Capitão Nascimento bate no Bonde do Foucault Por Reinaldo Azevedo Nunca antes neste país um produto cultural foi objeto de cerco tão covarde como Tropa de Elite, o filme do diretor José Padilha.
Os donos dos morros dos cadernos de cultura dos jornais, investidos do papel de aiatolás das utopias permitidas, resolveram incinerá-lo antes que fosse lançado e emitiram a sua fatwa, a sua sentença: “Ele é reacionário e precisa ser destruído”.
E houve quem não resistisse, cravando a palavra mágica: “É de direita”.
Nem chegaram a dizer se o filme – que é entretenimento, não tratado de sociologia – é bom ou não.
Seqüestrado pelo Bonde do Foucault (já explico o que é isso), Padilha foi libertado pelo povo.
A pirataria transformou seu filme num fenômeno.
A esquerda intelectual, organizada em bando para assaltar a reputação alheia (como de hábito), já não podia fazer mais nada.
Pouco importava o que dissesse ou escrevesse, o filme era um sucesso.
Derrotada, restou-lhe arrancar, como veremos, do indivíduo Padilha o que o cineasta Padilha não confessou.
Por que tanta fúria?
A resposta é simples: Tropa de Elite comete a ousadia de propor um dilema moral e de oferecer uma resposta.
Em tempos de triunfo do analfabetismo também moral, é uma ofensa grave.
Qual dilema?
Não há como ressuscitar o filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804), mas podemos consultar a sua obra e então indagar ao consumidor de droga: “Se todos, na sociedade, seguirem o seu exemplo, o Brasil será um bom lugar para viver?”.
O que o pensamento politicamente correto não suporta no Capitão Nascimento, o anti-herói com muito caráter, não é a sua truculência, mas a sua clareza; não é o seu defeito, mas a sua qualidade.
Ele não padece de psicose dialética, uma brotoeja teórica que nasce na esquerda e que faz o bem brotar do mal, e o mal, do bem.
Nascimento cultua é o bom paradoxo.
A cena do filme já é famosa: numa incursão à favela, o Bope mata um traficante.
No grupo de marginais, há um “estudante”.
Aos safanões, Nascimento lhe pergunta, depois de enfiar a sua cara no abdômen estuporado do cadáver: “Quem matou esse cara?”.
Alguns tapas na cara depois, acaba respondendo: “Foram vocês”.
E ouve do capitão a resposta que mais irritou o Bonde do Foucault: “Não!
Foi você, seu maconheiro”.
Nascimento, quem diria?, é um discípulo de Kant.
Um pouco desastrado, mas é.
Num dado momento, ele faz uma indagação: “Quantas crianças nós vamos perder para o tráfico para que o playboy possa enrolar o seu baseado?”.
Trata-se de uma mentira torpe a acusação de que o filme faz a apologia da tortura.
Ocorre que o ódio que a patrulha ideológica passou a devotar à obra não deriva daí.
Isso é pretexto.
O que os “playboys” do relativismo rejeitam é a evocação da responsabilidade dos consumidores de droga na tragédia social brasileira.
Nascimento invadiu a praia do Posto 9, em Ipanema.
Já empreguei duas vezes a expressão “Bonde do Foucault” para me referir à quadrilha ideológica que tentou pôr um saco da verdade na cabeça de Padilha: faço alusão também a uma passagem em que universitários – alguns deles militantes de uma ONG e, de fato, aliados do tráfico – participam de uma aula-seminário sobre o filósofo francês Michel Foucault (1926-1984).
Falam sobre o livro Vigiar e Punir, em que o autor discorre sobre a evolução da legislação penal ao longo da história e caracteriza, de modo muito crítico, os métodos coercitivos e punitivos do estado.
No filme, aluna e professor fazem um pastiche de seu pensamento, e isso serve de pretexto para um severo ataque à polícia, abominada pelos bacanas como força de repressão a serviço do estado e suas injustiças.
Foucault era pior do que isso.
Em Vigiar e Punir, ele fica a um passo de sugerir que o castigo físico é preferível às formas que entende veladas de repressão postas em prática pelo estado moderno.
Lixo.
O personagem Matias, um policial que faz o curso de direito, é o elo entre o Capitão Nascimento, o kantiano rústico, e esse núcleo universitário.
A seqüência em que essas duas éticas se confrontam desmoraliza o discurso progressista sobre as drogas e revela não a convivência entre as diferenças, mas a conivência com o crime de uma franja da sociedade que pretende, a um só tempo, ser beneficiária de todas as vantagens do estado de direito e de todas as transgressões da delinqüência.
Por isso o “Bonde do Foucault” da imprensa tentou fazer um arrastão ideológico contra Tropa de Elite.
Quem consome droga ilícita põe uma arma na mão de uma criança. É simples. É fato. É objetivo.
Cheirar ou não cheirar é uma questão individual, moral, mas é também uma questão ética, voltada para o coletivo: em qual sociedade o consumidor de drogas escolheu viver?
Posso assegurar: não há livro de Foucault que nos ajude a responder.
Derrotada, a elite da tropa esquerdopata não desistiu.
José Padilha e o ator Wagner Moura foram convocados a ir além de suas sandálias.
Mas o que interessa é o filme.
E o filme submete a um justo ridículo a sociologia vagabunda que tenta ver a polícia e o bandido como lados opostos (às vezes unidos), mas de idêntica legitimidade, de um conflito inerente ao estado burguês.
O kantiano rústico “pegou geral” o Bonde do Foucault.