Por Paulo d’Avila Filho Há um sentimento de derrota no ar.

Essa é uma característica inconveniente do jogo democrático: perdemos algumas batalhas e ganhamos outras. É legítimo que aquelas pessoas que perderam manifestem seu desagravo com relação aos tomadores de decisão e que procurem, com todas as armas socialmente aceitáveis e disponíveis, reverter a derrota sofrida. É preciso ter cuidado, no entanto, com os diagnósticos apressados produzidos no calor da hora.

Ao contrário do que se tem dito, a absolvição de Renan Calheiros pelo Senado não revela uma crise da democracia brasileira nem uma derrota da democracia.

Há, pelo menos, duas formas clássicas de se avaliar um processo democrático.

A primeira remete à avaliação aos resultados obtidos.

Assim, os vencedores podem dizer que se trata de uma vitória da democracia ao passo que os perdedores dirão que é uma derrota.

Ambas as avaliações, nessa forma de entender o problema, são igualmente válidas e concorrentes no debate público.

Uma outra forma se refere à observação dos procedimentos.

Nesse caso, a avaliação do processo estará sujeita ao uso correto dos procedimentos democráticos disponíveis, independentemente dos resultados obtidos.

Por esse ângulo, seria necessário acompanhar os passos do processo.

Em primeiro lugar, considerar que o presidente de uma casa legislativa foi acusado de falta de decoro, o que não é pouca coisa.

Em segundo, foi possível instaurar um processo contra esse senhor na Comissão de Ética, o que, também, não é pouca coisa em uma boa democracia.

O resultado do processo instaurado é contrário ao presidente da casa, que não se afastou do cargo, protegido pelo regimento interno do Senado, que faculta ao acusado a decisão de se afastar ou não de suas funções.

O processo cumpre sua última etapa indo ao plenário, em conformidade com a Constituição e com o regimento interno da casa.

No fim, o projeto de resolução que aplicava a pena de cassação de mandato foi derrotado.

O procedimento democrático foi cumprido e alguém hoje comemora uma vitória enquanto outros amargam uma derrota.

Podemos, é claro, questionar determinados procedimentos e pressionar para que sejam alterados.

A seção do Senado foi marcada por dois dispositivos previstos no regimento interno: o voto secreto e a seção secreta.

O voto secreto causa desconforto, pois vivemos um momento político de reivindicação do que se convencionou chamar de “transparência” das questões públicas.

O dispositivo legislativo, contudo, não visa proteger o parlamentar do eleitorado e das conseqüências eleitorais de seus atos, embora isso ocorra.

Mas preservá-lo das retaliações possíveis e das implicações corporativas de se julgar um colega, principalmente seu presidente.

Caso este presidente permaneça no cargo, como ocorreu, preserva-se a possibilidade de o senador votar conforme sua consciência, livre de pressões e potenciais retaliações futuras.

Apesar de ser um entusiasta da visibilidade pública da política, sou sensível ao sustentável argumento do mencionado dispositivo.

Não encontro, entretanto, sustentação no dispositivo da seção secreta.

Trata-se de uma atividade do Senado da República em uma decisão de interesse público.

Impedir que a imprensa, deputados federais e mesmo o povo em geral participem da seção é um contra-senso.

Neste momento de indignação, surgem os alarmistas que já falam em questionar a existência do Senado.

Independentemente dos discursos e argumentos ancorados em pressupostos doutrinários ou normativos ou ainda o questionamento quanto às funções exercidas pelo Senado, é preciso abordar o tema com cautela.

O Senado é fruto menos de pressupostos teóricos de boa engenharia institucional do que de acomodações políticas referentes a nossa história cultural e institucional.

No passado, funcionou como força centrípeta em meio à herança centrífuga que grassava no território brasileiro.

Hoje, presta-se a um papel de acomodação da profunda desigualdade regional, considerando igualmente entes federativos absolutamente desiguais, contribuindo para a manutenção do liame social.

Há quem diga que nos tornamos mais conservadores ao incorporarmos, em igualdade de condições, os grotões deste país.

Sou forçado a lembrar que isso faz parte de um projeto de Constituição de uma república democrática.

O Brasil é o todo e não a parte com a qual nos identificamos.

Não fosse isso, a absolutamente remota possibilidade de que tal ponto venha a ser apreciado no cenário político nacional me faz desconfiar das intenções de se eleger um ponto desses como central na agenda pública brasileira.

Parece nos desviar de pontos mais próximos, candentes e factíveis. É perfeitamente natural que se diga que o Senado votou contra a opinião pública.

Mas como esta opinião pública é insondável, a não ser a partir de pesquisa de opinião feita por profissional qualificado, fiscalizada por instituições idôneas, ficam os esforços retóricos de colar minha opinião à opinião pública, como faz freqüentemente a opinião publicada deste país.

Minha preocupação, mais uma vez, repousa na desqualificação da democracia brasileira como forma de justificar os revezes.

Um dia, diz-se que o Senado votou contra a opinião pública, depois se diz que a democracia brasileira não reflete a opinião pública, até que chegamos a mais curiosa máxima recente: “o povo votou contra a opinião pública”.

O princípio democrático que está na base da minha apreciação sobre o recente caso Calheiros deriva das considerações acima.

Venceram os adversários do meu ponto de vista, e só.

Venceram respeitando as regras do jogo democrático.

Nesse caso, o que foi derrotado é o campo daqueles que desejavam a cassação do mandato do presidente do Senado, não a democracia brasileira.

Meu desagrado com os resultados não pode me fazer “jogar fora a água suja do banho junto com a criança”.

Isso porque quando eu ganhar, quero o mesmo reconhecimento por parte dos eventuais perdedores.

Por falar nisso, cabe lembrar que a batalha não acabou.

Há ainda mais três representações contra Renan Calheiros.

Há disputas políticas e negociações entre situação e oposição em torno da agenda do Congresso que deixam os resultados finais em aberto.

A repercussão da decisão do Senado ainda vai reverberar por algum tempo.

Aqueles que hoje cultivam um sentimento de derrota devem acionar os mecanismos modernos e democráticos da sociedade brasileira para tentar reverter os atuais resultados.

Perdeu-se o primeiro round, não a luta.

PS:Cientista político, professor do Departamento de Sociologia e Política da PUC-Rio