Por Ciara Carvalho Os pontos são os mesmos.
A facilidade para comprar também.
Três meses depois de denunciar a venda livre de crack nas ruas da capital e do interior, o Jornal do Commercio refaz os caminhos do tráfico para mostrar que a droga continua imperando nas bocas-de-fumo do Estado.
Nada mudou. “Aviões” agem impunemente, com uma desenvoltura que desafia autoridades e abastece viciados de dia e de noite.
No Recife, o escritório do tráfico, montado às margens da Avenida Agamenon Magalhães, na entrada da Favela João de Barros, em Santo Amaro, mantém seu expediente diário.
Em Caruaru, no Agreste, a movimentação de mototaxistas chegando e saindo não deixa dúvidas: as bocas continuam a todo vapor.
Cenas corriqueiras.
Retratos de uma situação sem controle.
Situada na fronteira entre o descaso e a convivência com uma droga perigosa.
Mais letal e destrutiva.
A pior de todas.
Dita e vista assim por médicos e usuários.
Uma diferença que a polícia parece não enxergar.
Em três meses, tudo o que se viu foram ações pontuais.
Uma prisão aqui, outra acolá.
Nada que abalasse o lucrativo comércio que fez traficantes migrarem da maconha para a pedra de crack.
Diante de tamanha facilidade, a decisão de largar o vício torna-se ainda mais difícil.
O JC reencontrou os personagens que, durante os quatro dias da série de reportagens, deram depoimentos corajosos sobre o que é viver aprisionado pela dependência.
Retomou as histórias de jovens e velhos que se deixaram seduzir pelo crack.
E, nesse esforço, deparou-se com recaídas, fugas e exemplos de superação.
Relatos dramáticos, testemunhos do estrago e do sofrimento que essa droga mortífera vem causando aos filhos da classe média e da periferia.
Elas continuam lá.
Meninas de menor, mulheres grávidas, sempre com crianças por perto. É quase uma senha.
Esperam os clientes aparecerem, acomodadas em cadeiras plásticas e protegidas pela sombra de uma palmeira.
Não demora muito para a suspeita virar certeza.
O drive-thru do crack, flagrado pelo JC, segue em plena atividade.
As imagens feitas na entrada da Favela João de Barros, em Santo Amaro, área central da capital, e estampadas na manchete do jornal no dia 17 de junho deste ano, se repetem, com uma naturalidade impressionante.
Em poucos minutos, e com a mesma facilidade de antes, a reportagem comprou uma pedra de crack a uma garota que aparentava 16 anos.
Pagou R$ 20 por uma droga cujo efeito não dura mais que cinco minutos.
E ainda ouviu da adolescente que, se quisesse de novo, era só voltar mais tarde.
Ela e as outras certamente estariam lá.
A boca quase nunca fecha.
Nos novos flagrantes, registrados na semana passada, a única diferença é o local onde as pedras são escondidas.
Antes, elas eram guardadas na Academia da Cidade, construída pela Prefeitura do Recife às margens da Avenida Agamenon Magalhães, e usada como ponto de venda de crack.
Os traficantes aproveitavam o muro erguido para abrigar dois reservatórios da Compesa para esconder a droga.
Agora, mais cautelosos, o material fica na favela.
As meninas registram o pedido, atravessam a rua, pegam as pedras e retornam para fazer a entrega.
Atrás de crack, chegam clientes de todas as idades.
Chama a atenção um jovem de classe média, com uma mochila nas costas e jeito de universitário.
Ele se aproxima numa motocicleta Scooter, guiada por outro rapaz.
Desce e vai em direção às mulheres.
Acerta a compra e acompanha uma delas, entrando em um dos becos da favela.
Sai em minutos, atravessa a praça e segue para a Avenida Agamenon Magalhães.
Logo depois, o colega encosta, ele sobe na moto e vai embora.
Entrar na favela, no entanto, não costuma ser a atitude mais freqüente.
A pedra normalmente é entregue ali mesmo, no meio da rua.
No dia em que a reportagem comprou a droga em Santo Amaro, uma ação supostamente da polícia na Favela João de Barros causou estranheza.
Dois homens chegam a pé, com uniforme da Radiopatrulha.
Eles entram na comunidade e depois saem, dessa vez acompanhados de outros seis policiais.
Com armas na mão e um deles encapuzados, o grupo vai para a entrada principal da favela e depois entra numa Kombi da Empresa Metropolitana de Transportes Urbanos (EMTU).
Nenhum tiro foi disparado nem prisão, realizada.
O curioso é que não há registro oficial sobre qualquer ação da Polícia Militar nesse dia na favela. “Tem alguma coisa estranha. É possível que eles não sejam policiais.
Não temos como garantir que era o nosso pessoal”, afirmou a assessoria de imprensa da polícia.
A EMTU, entretanto, confirmou que existe uma Kombi da empresa à disposição da PM para ações de fiscalização do transporte clandestino.
CRACOLÂNDIA Assim como na capital, o crack continua sendo vendido livremente no interior.
Caruaru, a 140 quilômetros do Recife, é o melhor exemplo.
A cidade tem bocas-de-crack em todos os bairros, mas é no Salgado, na periferia, que a situação é mais chocante.
Lá a reportagem só precisou recorrer aos serviços de um mototaxista para conseguir comprar a pedra.
Não durou um minuto.
Nem precisou de nenhuma palavra.
O motoqueiro deu apenas um assovio.
E o garoto já foi perguntando: – Quantas? – Duas.
O jovem, que estava sentado numa calçada, pegou a droga, escondida ali do lado, e esperou a moto dar uma volta.
Dinheiro na mão, já foi atender outro pedido.
Franzino, com jeito de criança, ele não devia ter 15 anos.
O mototaxista reconheceu o garoto.
Diz que ele costuma fazer pequenos furtos no Centro de Caruaru.
Tinha tentado assaltar o motoqueiro com uma faca, semanas atrás.
Na Cracolândia, como é conhecido o local, ele é só mais um.
Em cada beco, fica uma boca.
E em cada boca, um “avião” pronto para fazer a entrega.
Nem mesmo o culto evangélico, celebrado em uma das esquinas, altera o movimento da boca.
Enquanto os crentes rezam, o exército do tráfico trabalha.
Tudo facilita a negociação.
O terreno é um descampado, com chão de terra batido e todo esburacado.
A escuridão domina.
A urbanização, se chegasse, ajudaria a afugentar o tráfico.
Pelo menos, da forma escancarada como ocorre hoje.
Qualquer um pode comprar.
Até a polícia, se quiser. “Basta chegar com um carro ou uma moto com placa de Caruaru. É limpeza total.
Se for de fora, eles ficam mais desconfiados.
Mas, dependendo da abordagem, vendem assim mesmo”, entrega o mototaxista, acostumado a levar e trazer usuários de crack, tanto da periferia como dos bairros nobres de Caruaru.
Ponto tradicional de venda, a Praça do Rosário, no Centro, estava com o movimento parado.
No fim de semana anterior, a polícia havia prendido duas garotas de programa com 13 pedras.
As mesmas mulheres que, cerca de três meses atrás, quando o JC esteve na cidade, tinham se oferecido para buscar crack na periferia para a repórter.
Elas não ficaram presas nem 15 dias.
De novo estão circulando na praça.
De volta ao batente.