Por Paulo Sérgio Scarpa Especial para o Blog de Jamildo O escritor Euclides da Cunha (1866-1909) deve estar muito feliz, onde estiver, com as encenações de seu Os Sertões, dirigidas pelo polêmico, controvertido, provocador e inteligente encenador paulista José Celso Martinez Corrêa, 70 anos.
Afinal, o livro é considerado uma das obras mais difíceis de ser lida na literatura brasileira (para alguns, a palavra correta seria chato).
Uma obra muito citada e pouco lida, por sinal, mas que recupera a história civil, política, militar, econômica e até ambiental deste País até o século 19.
Os Sertões, de José Celso, foi dividido em cinco épocas, uma maratona de cinco espetáculos, encenados no Recife no Bairro do Recife, numa estrutura de ferro e madeira de fazer gosto a qualquer arquiteto, de qualquer país.
São cinco incursões oníricas, cruéis, racionais e declamatórias sobre a formação da Nação brasileira, com enfoque especial, e detalhado, na carnificina em Canudos, na época de Antonio Conselheiro.
José Celso não mede esforços físicos e intelectuais para traduzir a obra euclidiana.
A começar pela sua concepção da própria obra, uma síntese de um país que, pasmem, não teria mudado, que permanece o mesmo quando tomamos como princípio que ele, o País, foi moldado pela força, pelo dinheiro e pela submissão dos mais fracos.
No meio desse discurso político, histórico e surpreendentemente atual, José Celso, o diretor da polêmica encenação O rei da vela, de 1967, a partir de texto de Osvald de Andrade, uma provocação com consequências duríssimas para ele e para seu elenco por causa da reação brutal dos ditadores de plantão na época.
E de encenações históricas como Galileu, Galilei, de Bertold Brecht; Selva das cidades, do mesmo Brecht; As três irmãs, de Atonin Tchecov; e Os pequenos burgueses, de Máximo Gorki.
Tudo no legendário Teatro Oficina, em São Paulo.
Em Os Sertões, com elenco com 47 atores e atrizes, José Celso tira o máximo do mínimo, a começar pela cenografia, desafiadoramente desprovida de elementos que não sejam os essenciais para compor a cena.
Muitas vezes, apenas uma vela, uma pena de pássaro, uma faca.
E centenas de metros de tecido que formam cascatas, rios e montanhas.
Como no nascimento do Rio São Francisco que, nos Sertões, ganha especial destaque por ser o rio nacional por excelência.
Metros de metros de tecidos nas cores amarelo, de Oxum; vermelho, de Xangô, de verde-azulado, de 0gum, se transformam num imenso rio que conduz o espectador até Canudos, cenário central da matança provocada pela intolerância e pelo poder econômico.
Ou quando reproduz, através dos atores, a caatinga, as bromélias, os xique-xique e os cabeça-de-frade, algumas plantas que resistem à selvagem secura das caatingas.
O brasileiro é antes de tudo um forte, diz ele, paraodiando o sertanejo é antes de tudo um forte, de Euclides da Cunha, franse-síntese que Os Sertões ganhou com o passar dos anos porque bem poucos conseguiram ler e compreender a análise minuciosa de Euclides.
Na segunda apresentação, mais política que a primeira, José Celso conta praticamente a história do Brasil a partir de quatro premissas: a Nação brasileira foi formada por um homem - seria pardo?, pergunta ele, existe o pardo, questionam os atores? - e por suas circunstâncias: selvageria, assassinatos, chacinas e extermínios - de índios, mamelucos, negros e brancos pobres.
E, não se pode esquecer disso, como diria o diretor, através do sexo, através do estupro para abater o moral das comunidades a serem dominadas pelo poder econômico, sempre o dinheiro, o poder, o sexo e a morte para quem atrapalha ou impede a riqueza.
Não sem razão o segundo dia foi marcado pelo sangue, pela dor, pelos gritos, numa encenação quase sem palavras, na primeira parte.
Basta ver as cenas: os primeiros foram os portugueses que dominaram os índios; depois vieram os invasores, holandeses, franceses, espanhóis e ingleses, que dominaram parte dos portugueses e escravizaram índios, negros e mamelucos.
Para contar a sua saga, José Celso não se inibe até em ficar nu no palco ao incorporar o famoso Bispo Sardinha, prato fácil e farto dos índios tapuias.
A nudez aos 70 anos não choca a platéia, ao contrário, provoca palmas.
E retira de seus atores qualquer ornamento que esconda rolas, vaginas e bundas.
Todos estão à mostra, pintados de índios, suados pelo esfoço físico por mais de quatro horas de duração das peças ou carregando o estigma de vários personagens.Engana-se quem pensa que o diretor faz isso só agora, toda a carreira de José Celso foi marcada pela exibição do fálico, do despudoramento, da falsa moralidade religiosa ou social.
No sábado, os Sertões prosseguiu com a terceira saga, a que tratará do nascimento e crescimento de Antonio, o que seria mais tarde conhecido como O Conselheiro, e as perseguições às comunidades que já tentavam se rebelar contra o poder econômico, sempre ele, em busca de terras, ouro e pedras preciosas.
Não escapam da história nem os bandeirantes paulistas, que chegaram ao Nordeste para devastar e matar em nome da religião católica e da moralidade pública.
Sábado e domingo, a saga se transformará na luta pela terra, em sessões com mais de seis horas de duração.
Para quem gosta de teatro ou deseja reler Euclides da Cunha ou para quem tem curiosidade em saber como se pode fazer teatro profissionalmente com muito pouco em cena, muito ensaio, inteligência e amor pela arte.