Durante as férias na ilha caribenha, a freqüência com que Lacerda (co-diretor de “Ônibus 174”) se deparou com gente que elogiava o regime em público para, intimamente, desfiar um rosário de queixas o convenceu a prolongar a estada.
Assim, uma semana virou um mês, e ele começou a entender a aparente esquizofrenia local. “Vi que, em qualquer diálogo, devia considerar o quanto o cara estava falando porque queria que eu ouvisse, o quanto estava querendo me enganar e o quanto queria dizer, mas não podia.” De volta ao país a convite da Escola Internacional de Cinema e TV, sua câmera pôde passear por mais um mês.
O saldo da temporada cubana: duas detenções (uma delas depois da denúncia de uma entusiasta do regime, que engabelou a equipe de filmagem enquanto a polícia se deslocava é sua casa), 17 abordagens policiais e 70 horas de material bruto.
Nas fitas, além do registro da encruzilhada política da ilha, Lacerda colheu depoimentos sobre consumismo, sexo, emigração e o imaginário estrangeiro sobre o país.
Escancarando frustrações A dupla moral é condição para se viver em Cuba".
A frase, do cineasta Felipe Lacerda, 37, é a senha para entender os personagens e discursos contraditórios que povoam “Em Cuba”, série de dez documentários dirigidos por ele que estréia nesta terça, às 21h, no Canal Brasil.
A série “Em Cuba” é instrutiva para quem ainda apóia a inusitada eficiência do governo brasileiro em deportar os dois boxeadores cubanos que desertaram no Pan.
Sair da ilha, custe o que custar, está na boca da maioria dos entrevistados.
Felipe Lacerda, co-diretor de um dos documentários mais corajosos sobre a realidade social brasileira, “Ônibus 174” (2002), também foge do clichê turístico “os cubanos são pobres, mas felizes”.
Mostra o que é miséria sem democracia e dá voz a quem já cansou de defender a Revolução.
Do médico que morou na Nicarágua por dois anos e quer voltar a deixar Cuba ao artista que relata seu desemprego crônico desde que criticou o governo, vários cubanos escancaram no documentário suas casas e frustrações.
Na distribuição de senhas na fila para conseguir telefone, cubanos contam que é necessária uma carta de recomendação do Partido Comunista ou do Comitê de Defesa da Revolução para ter o aparelho.
Uma fiscal do comitê, para quem Fidel é “nosso guia”, chama a “polícia ideológica”, que interroga por quatro horas o documentarista.
Com exceção das lições de Nena, ditadas à câmera, dos demais só ficam incertezas.