A chulice apropriada Todo cuidado é pouco para não tomar ao pé da letra o que os políticos dizem.
Ou porque muitos deles mantêm um relacionamento difícil com a verdade, ou porque o prazo de validade da maioria de suas declarações varia conforme as conveniências que as ditaram, ou ainda porque, na presença de câmaras e microfones, são possuídos por surtos de arrebatamento, que cessam tão logo se desligam os equipamentos.
No entanto, vez por outra, quando a fala de um político retrata inquestionavelmente e sem rebuços uma realidade do momento, toda atenção há de lhe ser dada. É o que se aplica a uma das mais chocantes afirmações já ouvidas no plenário de uma casa legislativa federal brasileira – coma reveladora agravante de não ter sido rebatida por nenhum dos pares de quem a proferiu, o senador pernambucano Jarbas Vasconcelos, do PMDB.
Na sessão da quarta-feira, em aparte ao ex-presidente do Conselho de Ética Sibá Machado, que subira à tribuna para dar a sua versão da renúncia ao cargo, Vasconcelos disse que pedira o afastamento de Renan Calheiros da presidência do Senado “para não nos causar o constrangimento que causa hoje, presidindo a sessão em que o senhor explica as razões que o levaram a renunciar”.
E pôs o dedo na ferida: “O Senado não pode ficar nessa perplexidade em que se encontra, sob pena de se desmoralizar.
O que não pode é o Senado ficar sangrando e, mais do que isso, fedendo.
Essa situação está ficando insustentável.” Nada poderia definir melhor a atmosfera em que vive hoje a Câmara Alta do que o termo chulo.
Vasconcelos não é nenhum boquirroto ou irresponsável.
Com 64 anos de idade e 37 de vida política, foi três vezes deputado, duas vezes prefeito e duas vezes governador – sempre pelo mesmo partido. É um dos poucos peemedebistas de nomeada que não aderiram ao governo Lula.
A informal “bancada ética” do Senado – que inclui, notadamente, o seu correligionário Pedro Simon, o pedetista Jefferson Peres e o petista Eduardo Suplicy – tem nele um dos mais vigorosos porta-vozes. “O Congresso não pode mergulhar mais na lama do que já está mergulhado”, adverte, por exemplo.
Poder, sempre pode, como vimos aprendendo.
Mas o essencial é que já era mais do que hora de algum integrante da chamada Câmara Alta da República tapar o nariz, corajosamente, para o mau cheiro que dali emana – cada vez mais forte.
Enredado numa parceria suspeita com o lobista de uma empreiteira e apanhado no contrapé da papelada com que pretendia provar ter recursos próprios para as suas despesas extraconjugais, Calheiros fez do Conselho de Ética um circo mambembe, tornou o Senado refém de suas maquinações, tudo para que, no fim, a impunidade prevaleça.
A sua mais recente mistificação visa a transformar um problema circunscrito à apuração de quebra de decoro parlamentar numa conspirata da oposição contra o presidente Lula.
Buscando alinhar o Planalto com as suas manobras para salvar a própria pele desidratada, o político alagoano adotou amesma tática do grão-companheiro José Dirceu em 2005, quando tentava negar as verdades do escândalo do mensalão com o cínico argumento de que os fatos incontestáveis que se empilhavam uns sobre os outros eram uma fabricação tucano-pefelista, reforçada pela mídia “opressiva”, para desestabilizar o governo do PT.
Não foi com outra intenção que Calheiros pediu para ser recebido por Lula.
Mas, ontem, o presidente lhe deu em público menos do que ele talvez esperasse. “Todos são inocentes até que se prove o contrário.
O julgamento tem que ser feito com lisura para que não se cometa nenhum erro em nenhuma de nossas instituições”, afirmou.
Para azar do senador, no mesmo dia em que foi a palácio vazou uma gravação aparentemente autêntica em que o lobista Cláudio Gontijo diz à ex-amante do amigo que ele o procurava para socorrê-lo nos seus apuros comgastos eleitorais. “É sempre assim: \Cláudio, arruma aí, pede emprestado", ouve-se o lobista contar.
Ao Conselho de Ética, Gontijo negara taxativamente ter contribuído para as campanhas de Calheiros.
E este reiterou que nunca recebeu um centavo do outro para qualquer finalidade.
Dessa forma se condensam,emsucessão, as substâncias tóxicas que tornam irrespirável a atmosfera moral do Senado, como denunciou Jarbas Vasconcelos.