Por Ciara Carvalho Da Editoria de Cidades do Jornal do Commercio Um processo diferente de migração, desses que as autoridades demoram a enxergar e causam efeitos devastadores, acontece em Pernambuco.

Nascido no submundo, se espalha com a velocidade de uma epidemia.

A terra da maconha foi dominada pelo crack.

Parece uma peste.

Em todo o canto tem.

Em velhos e combatidos redutos de venda de maconha, o crack agora é rei.

A pedra vale mais que a vida.

Um preço tabelado: R$ 10 em qualquer lugar do Estado.

Ninguém vende por menos.

E ganha-se muito.

A matemática financeira, que move o tráfico como qualquer outro negócio nascido para dar lucro, dita as regras.

Maconha virou droga de saudosista.

Os traficantes migraram.

Os viciados foram junto.

Enveredaram por um caminho perigoso e de difícil retorno.

Mortífero, o crack é sete vezes mais potente do que a cocaína. É a droga com maior poder de destruição.

Ela desconhece uso terapêutico.

Foi inventada pelo tráfico para enriquecer o tráfico.

Em menos de um mês, o usuário torna-se não só um viciado.

Mas um viciado crônico e compulsivo.

Sem ajuda profissional, raramente consegue largar o vício.

DRIVE-THRU É fim de tarde no Recife.

Milhares de carros trafegam pela Avenida Agamenon Magalhães, nas imediações do Espinheiro, bairro nobre da Zona Norte.

De um lado da via, pessoas entram e saem da Delegacia Regional do Trabalho (DRT), em mais um dia de expediente.

Bem em frente, só que no lado oposto da avenida, um diálogo cifrado: – Tá rodando? – Fala alto. – Tá rodando? – Manteiga? – É. – Quanto? – R$ 40. – Duas de R$ 20? – É. – Tá.

Vai ali e volta.

Três minutos depois – tempo de um giro de carro pelo quarteirão – a reportagem do Jornal do Commercio tinha duas pedras de crack na mão, vendidas por uma menina de 16 anos.

Ali, na entrada da Favela João de Barros, em Santo Amaro, e às margens do principal corredor viário da cidade, o tráfico de drogas corre livremente. É o drive-thru do crack.

O motorista vem pela avenida, entra à direita nas proximidades da Universidade de Pernambuco (UPE), contorna a praça, faz o pedido, dá uma volta rápida e retorna para a entrega. É pagar, pegar e ir embora.

Tudo nas barbas da polícia.

Tudo em plena luz do dia.

Entre uma venda e outra, viaturas da Polícia Militar entram e saem da favela, passam bem em frente à boca.

Mulheres grávidas e adolescentes, encarregadas de vender a droga, continuam em seus postos, sentadas em cadeiras plásticas, como se estivessem numa animada conversa.

O movimento é grande. É mais um dia de tráfico na Agamenon.

Quem passa pela avenida não imagina que os traficantes fizeram da recém-inaugurada Academia da Cidade uma espécie de escritório a céu aberto.

Um lucrativo ponto de venda que, pela facilidade e comodidade, atrai gente de tudo que é canto.

Eles chegam de bicicleta, moto, em carros de luxo.

Chegam a pé, compram a droga e seguem caminhando tranqüilamente.

Todos estão à procura da mesma coisa: a manteiga, como é chamado o crack na linguagem da boca.

A praça é perfeita para o comércio que ali circula.

Meninos jogam futebol na quadra ao lado, enquanto outros adolescentes brincam de skate.

Mesmo sendo na entrada da favela, a aparente normalidade do local facilita o trabalho dos “aviões”.

Melhor ainda foi o muro que a Prefeitura do Recife construiu para abrigar os dois reservatórios da Compesa que abastecem a praça. É lá dentro, protegidas pelo paredão de concreto, que algumas meninas e mulheres escondem as pedras de crack.

A droga fica guardada no canto da parede.

Enterrada sob a grama.

Porque o esquema é profissional.

Ninguém fica com a pedra na mão.

Se houver uma batida policial, todas estão livres do flagrante.

Quando o viciado chega e faz o pedido, elas recebem o dinheiro e vão direto para o cercadinho.

Algumas nem disfarçam.

Entram, se abaixam, pegam a droga e voltam para entregar ao comprador.

EXPEDIENTE A movimentação começa cedo. Às 9h, as meninas já estão por lá.

Há sempre crianças por perto.

Bebês de colo passam de mão em mão, quando uma das garotas sai para buscar a droga.

A reportagem flagra o exato momento em que um taxista, apontado pela polícia como funcionário do tráfico, chega para abastecer a favela.

Logo depois, os clientes vão aparecendo.

A boca está aberta.

Uma das meninas prefere esconder o crack embaixo de um vaso sanitário num dos becos na entrada da João de Barros.

Pedido feito, é só atravessar a rua e entregar a encomenda.

Como são várias mulheres, elas se revezam na hora da abordagem.

Cada uma tem a quantidade certa de crack para vender.

O que não faltam são clientes para comprar.

Quando a noite chega, o faturamento da boca só faz aumentar.

Na Rua Barros Barreto, conhecida como pistinha e principal acesso da favela, outros pontos de venda de droga agora chamam a atenção.

Os carros entram e param no início da via.

O motorista estaciona, o “avião” encosta.

Cinco minutos depois, o veículo vai embora devidamente abastecido.

Em vão, viaturas da PM circulam com as luzes apagadas na tentativa de flagrar a venda.

Motoqueiros, contratados pelo tráfico, se encarregam de avisar quando a polícia está passando.

São os seguranças da boca.

Quando eles começam a buzinar, é porque “sujou”: a viatura está na área.

O comércio descarado do crack no local chega a criar situações absurdas.

Durante a ronda noturna, policiais militares desconfiam de um homem sentado num dos bancos da praça.

Um policial revista o rapaz, olha a sua bolsa e, sem encontrar nada, volta para a viatura.

Segundos depois – é só o carro se afastar – e ele se aproxima das meninas.

Gesticula com as mãos pedindo pressa e, no instante seguinte, recebe as pedras de crack.

Vai embora como se nada tivesse acontecido.

A livre movimentação dos traficantes nas margens da Avenida Agamenon Magalhães não é segredo para a polícia.

Pelo contrário.

A Favela João de Barros já foi alvo de sucessivas operações e várias prisões ocorreram.

O principal fornecedor de crack da área está na prisão.

Muitos “aviões” já caíram.

Outros rapidamente assumiram o lugar.

Uma das ações da Delegacia de Repressão ao Narcotráfico deixou dois dias a favela sem crack.

Foi o máximo que a polícia conseguiu.

No terceiro, as bocas estavam de volta a todo vapor.

PS: Não deixe de ler a reportagem completa sobre o avanço do crack em Pernambuco, no JC deste domingo (17).

E acompanhe toda a série, que será publicada até a próxima quarta (20).

Um universo paralelo e assustador, que continua se expandindo neste exato momento. À margem da lei, de um Estado impotante e logo ali, do nosso lado.