A Revolução Bolivariana e seus componentes étnico-raciais Por Edílson Silva Nos últimos dias dois fatos me chamaram um pouco mais a atenção: a não renovação da concessão pública à emissora de televisão RCTV na Venezuela e a publicação midiática de uma pesquisa sobre miscigenação, “mostrando” que no Brasil não existem negros e brancos puros.

Já estava para escolher entre um ou outro tema para escrever este artigo, mas a conexão sutil entre ambos é irresistível.

O fato do governo venezuelano não ter permitido a manutenção do funcionamento da Rádio Caracas de Televisão - RCTV, não renovando sua concessão pública e colocando em seu lugar a Televisão Venezuelana Social – TVES, uma TV pública com forte programação educacional e cultural, constitui-se num positivo passo no aprofundamento da chamada Revolução Bolivariana.

Ali não se tratou apenas de uma vingança ou castigo contra uma emissora que planejou e orquestrou um covarde golpe contra o governo Chávez e contra a soberania do povo venezuelano, como tentam passar as co-irmãs da RCTV pelo mundo afora, que prestam os mesmos desserviços que a RCTV prestava à Venezuela.

Não foi apenas uma opção de governo, mas uma opção de regime, com incidência profunda na superestrutura ideológica da sociedade venezuelana.

Não se trocou uma RCTV de oposição por uma de situação.

Alterou-se a política de comunicação de massas no país, tirando das mãos de uma elite econômica os mecanismos com os quais manipulava a consciência social.

E esta Revolução Bolivariana espalha-se com força pela América Latina.

Países como Bolívia, Equador, Nicarágua, Peru, Argentina e Paraguai, por exemplo, sofrem influência em maior ou menor medida das ações do povo e do governo venezuelano. É um processo continental que questiona os pilares de uma dominação secular em nosso subcontinente.

E o que esta Revolução Bolivariana e a não renovação da concessão à RCTV tem a ver com a campanha midiática sobre miscigenação no Brasil?

Tudo.

As lutas e vitórias dos povos latino-americanos nos dias atuais, “encarnadas” na Revolução Bolivariana, tem um elemento propulsor inconteste: o componente étnico-racial.

As populações indígenas, majoritárias nestes países, estão dando um grito de independência.

Trata-se, portanto, de uma revolução indígena, que pegou as burguesias locais e inclusive as forças imperialistas de calças curtas.

Estas últimas, acostumadas a um confronto no modelito exclusivo classe contra classe, nunca imaginavam que sua face branca e opressora pudesse aparecer para milhões como ela realmente é, cruel e repugnante, tornando-se combustível para uma profunda revolução.

Não imaginavam que Simon Bolívar, aquele que outrora expulsou os espanhóis da América Latina com espada em punho, ressurgiria na consciência de milhões.

Muito menos imaginavam que este Bolívar ressuscitado, renovado e revitalizado, se encontraria logo com Karl Marx, em pleno século XXI.

Em outras palavras, olhavam atentos para os portões de alguma fábrica, aguardando algum operário clássico em passeata, segurando uma faixa, em campanha salarial, quando foram surpreendidos por uma pedrada certeira e mortal, vinda de outra direção, atirada por um índio.

Parece que agora não querem ser pegos de surpresa no Brasil.

Devem estar agradecendo a todos os deuses pelo fato de o Brasil falar português e Bolívar não ser tão popular por aqui.

Devem agradecer ainda mais pelo fato de Lula, nosso presidente, ser como é: despreocupado com a soberania de seu país e de seu povo.

No Brasil não temos Bolívar, mas temos Zumbi dos Palmares.

Nossos povos indígenas foram praticamente exterminados, mas os negros não.

A pesquisa publicada esta semana, numa verdadeira campanha do “Brasil miscigenado”, busca manter Zumbi adormecido para os milhões que ainda não o ressuscitaram em suas consciências. É uma forma de estabelecer um “cordão sanitário” entre o Brasil e o processo revolucionário que acontece na América Latina de conjunto.

Uma grande emissora de televisão no Brasil, que cobre “globalmente” o território nacional, uma espécie de RCTV local, está na vanguarda da campanha.

Antes mesmo da divulgação mais ampla da pesquisa, esta emissora mostrou dois irmãos gêmeos, idênticos, que tiveram tratamento diferenciado na utilização do critério de cotas para negros em uma universidade de Brasília.

Um foi absorvido no critério, o outro não.

Conclusão da reportagem: no Brasil, não dá pra saber quem é negro e quem não é.

No outro dia, nova reportagem.

Seu Jorge, músico, negro como eu, pela dita pesquisa, é mais europeu que africano, ou seja, mais branco do que negro.

Daiane dos Santos, a ginasta olímpica, que todo mundo achava que era negra, segundo a pesquisa, também é mais branca do que negra.

Neguinho da Beija-Flor, que não tem este apelido por acaso, também está entre os não-negros recém descobertos.

A campanha vai continuar.

Os negros ilustres citados acima, doaram amostras de sangue para a referida pesquisa e nos próximos meses novas “constatações” deverão ser divulgadas.

No entanto, os “especialistas” entrevistados, todos “cientistas”, afirmam que uma conclusão já está tirada: o Brasil não pode ser dividido entre negros e brancos, causando rupturas no tecido social, por que estas classificações simplesmente não existem.

Para a campanha pegar pra valer, além dos negros/não negros já citados, foram mobilizados também a cantora Sandra de Sá e o atacante Obina, do Flamengo, um dos times de futebol mais populares do Brasil, com torcedores em todo o país.

Ou seja, música, futebol, carnaval, esportes, paixões nacionais, todos os flancos populares fechados.

Se emissoras de TV são capazes de afirmar que o Neguinho da Beija-Flor não é negro, causando coceira nos olhos de quem acompanha a reportagem, imaginem o que não fazem com os dados econômicos, com os fatos do cotidiano, com a cobertura da política, etc.

A conexão é muito sutil, mas existe, e é assim que as grandes manipulações de massas funcionam.

Na Venezuela, estas manipulações perderam muita força com o fechamento da RCTV.

No Brasil, infelizmente, ainda somos obrigados a ver âncoras de TV afirmando que o redondo é quadrado e que o amarelo é azul.

Mas um dia isto vai mudar.

Tem que mudar.

PS: Edilson Silva é presidente do PSOL/PE, foi candidato ao Governo do Estado em 2006 e escreve todas as sextas-feiras para o Blog do Jamildo