TARECO DE QUEIJO Por Gustavo Krause No meu tempo, rapariga merecia respeito.
Não é saudosismo.
Como os estóicos, luto todo dia para me libertar das amarras do passado e dos temores do futuro.
Portanto estou à vontade para afirmar: no meu tempo, rapariga merecia respeito.
Ascenso Ferreira as chamava carinhosamente de "Damas da Noite".
Carlos Pena, no Guia Prático da Cidade do Recife, ao descrever o bairro que abrigava a zona do meretrício "com seu pecado diurno e o seu noturno pecado", falava de uma harmoniosa convivência entre os bancos – "capitais da Capital" –, "a ex- austera Associação Comercial", a "sempre fútil Câmara Municipal" e "a alegre pensão da redonda Alzira, a viga mestra da prostituição" e preconizava: "vivem tão bem, em tão segura união/, qualquer dia, todos juntos vão fundar a Associação dos Múltiplos Pecadores/ com banqueiros, comerciantes, prostitutas, vereadores, ingleses do Britsh Club/homens doentes e sãos/pois o camelô já disse que somos todos irmãos".
Tinha Maria Magra, outra baluarte, referida pelo cronista/poeta Ronildo Maia Leite como "Grande Maria, essa magra concebida sem pecados".
Tinha muitas com nomes e codinomes, como a Lúcia, de Alberto da Cunha Melo, "um quase nome" ou nomes de guerra que ficaram inscritos na bela e triste história das madalenas pernambucanas.
Outro dia, fui entrevistado por uma estudante de sociologia que preparava a monografia de conclusão de curso.
Tema: ascensão e queda da boemia e da prostituição no bairro do Recife.
Fui logo dizendo: no Brasil, país da jabuticaba, puta goza e cafetão se apaixona.
Pelo menos naquele tempo.
E acrescentei: as prostitutas tinham um código de conduta sexual e almejavam "sair da vida" na primeira oportunidade.
Se o cliente propusesse "ato libidinoso diverso da conjunção carnal", era severamente repelido; se a rapariga encontrasse pelo meio do caminho um "coronel" apaixonado, transformava-se em mulher "teúda e manteúda" e passava a "proceder" que, segundo o jargão do bordel, significava fidelidade absoluta ao seu homem.
Curiosamente, as intimidades se passavam nos cômodos dos velhos sobrados onde não faltavam bacia, toalha e um crucifixo na parede, perdoando, por antecipação, os pecados do mundo.
Havia, de fato, uma aura de romantismo e glamour, inclusive nos bares, boates e pensões; não faltavam os valentões, entre eles o legendário Lolita, macho brabo e bicha mansa, que, certa vez, molinho de apanhar da guarnição da Rádio Patrulha, botou as mãos no quarto e se vingou do algoz com a seguinte tirada: "Bate amor…Bate neste corpo que já foi teu".
No emergente mundo urbano da época, a prostituição servia como escudo da virgindade compulsória e contrariada das "moças de família"; assim como as mucamas da sociedade patriarcal rural, por gosto ou desgosto, iniciavam a vida sexual do sinhôzinho e acendiam o fogo morto do patrão entediado com as obrigações conjugais junto à esposa matronal que já cumprira a missão procriadora.
A minha entrevistadora, entre curiosa e incrédula, asseverou com razão: "então os costumes mudaram radicalmente!".
E assumiram outras formas, inclusive as antigas "doenças do mundo", minha filha, deixaram saudade.
Os tipos, as aspirações e até as intimidades mudaram (hoje vale-tudo, menos, segundo as profissionais, beijo na boca).
Bebel, de "Paraíso Tropical", faz um tipo assumido e escrachado; as mais "discretas" assumem disfarces profissionais; outras estão oferecendo serviços em classificados e na realidade virtual da Internet; não faltam as que se iludem com o fenômeno da globalização, dão um verdadeiro calor nos gringos, mas, de vez em quando, quebram a cara; não são poucas as que viram celebridades, tornam-se best-sellers contando experiências em livros ou best-bundas mostrando o corpo em revistas especializadas.
Já não mais se interessam pela estabilidade proporcionada pelos velhos coronéis: umas não querem sair do ramo; muitas entram para escapar da miséria.
O que não falta é cliente besta e empresária sabida, a caftina esperta, hoje, uma agenda ambulante, espécie de mulher-bomba que, de vez em quando, faz tremer os alicerces da República para alegria da mídia, desespero dos cavalheiros e propaganda do negócio.
Tudo mudou para continuar na mesma: o cara paga e o serviço é prestado.
A novidade mesmo, dizem os jornais, é o tareco de queijo, iguaria servida como entrada para o rodízio das carnes na "Maison de Odete".